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30 setembro 2016

Depois da vida - Marina da Conceição



DEPOIS DA VIDA


Jesus afirmou que "nenhuma das Suas ovelhas entraria no Reino dos Céus sem que antes pagasse a dívida inteira ceitil por ceitil".

O processo da evolução é uma experiência que se realiza por etapas, em que o Ser progride pela dor quando o amor permanece desdenhado.

Hoje sou feliz, porém, antes conheci a dor e a amargura.

Nasci, há menos de cinqüenta anos, numa família abastada, em cidade próxima. Meus pais, fazendeiros prósperos, esperavam por um filho que levasse a propriedade adiante.A minha chegada causou-lhes um grande transtorno, desde que eu não correspondia aos anseios acalentados. Experimentei, desde a primeira hora, o desdém e a mágoa dos pais frustrados que não queriam uma filha. E, a seguir, á medida que o tempo se passou, a fissura inicial fez-se um abismo entre nós, porquanto, como consequência das leis divinas, a idiotia e a epilepsia me assinalaram a debilidade orgnica e mental.

Quatro anos depois do meu nascimento um irmão veio coroar a felicidade do nosso lar, fazendo, não obstante, que a minha dor fosse tornada insuportável.

Na minha limitação, entretanto, eu não podia avaliar o que, em verdade, se passava. Quando as convulsões epiléticas assaltaram-me, a partir dos sete anos, um verdadeiro calvário se apossou da minha vida fragmentada pelas limitações mentais e por sofrimentos outros que me eram impostos.

Pessoas inescrupulosas, chantagiando a presunção da minha família, afirmavam ser eu possessa de demônios, o que levava meus pais a aplicarem-me surras constantes e homéricas, em vãs tentativas de expulsar de mim o Espírito mau, execrando-me com epítetos malsãos e expressões que me humilhavam, na presença dos empregados e dos demais familiares.

Não fuí a bênção do caminho materno que, ao contrário, não escondia sua ojeriza pela minha presença.

Era obrigada a fazer as refeições à parte da família, porque o meu descontrole motor sempre gerava cenas embaraçosas à mesa.

Aos quinze anos, apresentando uma forma harmônica, na estupidez de uma mente limitada e enferma, fui vítima de pessoas mais infelizes, que me estupraram, em plena mata, sem que eu tivesse consciência da hediondez do crime; e minha mãe, acreditando-se vulgar, exigiu de meu pai que tomasse providências, que se complicariam mais tarde, após uma sucessão de agressões físicas que me deixaram prostrada no leito por vários dias.

Não terminou aí o meu calvário, porque, pouco mais de dois meses depois, anunciou-se uma gestação indesejada.

Meus genitores, tomados de fúria, levaram-me para a mata e espancaram-me impiedosamente, a fim de que eu acusasse o homem que me havia desencaminhado, para que eles encenassem um matrimônio impossível ou mandassem lavar-lhes a honra manchada com a vingança. Na minha alucinação e desequilíbrio, no entanto, eu não podia identificar o meu algoz.

Ataram-me então, a um tronco de árvore, e meu pai, tomado por um furor indômito, chibateou-me até que a morte me adveio.

Experimentei terrível dor. Num certo momento, uivando como um animal e tentando libertar-me das amarras, vi-me subitamente projetada em um outro cenário, na forma de uma fidalga aparentando quarenta anos, diante de uma escrava com evidentes sinais de parto, numa senzala miserável e infecta. Ali presente eu exigia o feitor que lhe amarrasse as pernas, enquanto lhe retinha os braços no tronco da punição. Aquele filho não podia nascer porque era do meu marido com a jovem negra que o roubara de mim. Acompanhei o trucidar daquele corpo moço, nas violentas contrações do organismo, com zombaria. Gargalhava, enquanto seus gritos dilacerantes de dor ecoavam por toda parte. Vi-a morrer, sem que o filho fosse projetado para fora.

Nesse momento, voltei à cena em que me via com a cabeça tombada. . .

Senti-me livre e leve, enquanto minha mãe que me concedera a maternidade, havia sido a escrava que eu mandara matar, e o homem que me houvera trazido à vida era o meu marido de outrora a quem eu negara o direito da paternidade.

Nesse momento uma doce paz tomou conta de mim. Abandonei o casulo carnal, reconhecida, e porque alguém me aparecesse oferecendo-me mãos generosas, passados alguns minutos, ali mesmo, me pus de joelhos e agradeci a deus a oportunidade de resgatara o crime que cometera antes, a fim de poder encontrar a paz perante a Justiça Divina, entregando os meus genitores à própria consciência, sem qualquer rancor.

Aqui venho hoje, para dizer que todas as dores, mesmo aquelas que se apresentam com caráter mais chocante e cruel, têm as suas raízes no amor desprezado, que enlouqueceu no passado, quando engendramos crimes e que, agora, a Providência deles nos permite liberar, a fim de granjearmos a plenitude da paz.

Evitai comprometer-vos com qualquer tipo de violência, mantendo-vos confiantes nas leis de Deus que vigem em toda parte!

Quem se entrega à divina condução, de forma nenhuma perece para renascer na grilheta da escravidão pelo erro.

O amor consegue alforria e benção que libera o Espírito para o empreendimento da sua marcha feliz.

. . . E tende em mente que nenhuma das ovelhas que Deus confiou a Jesus se perderá. Mas ninguém entrará no reino dos Céus, sem que haja pago a "sua dívida ceitil por ceitil". 


Marina da Conceição 
Psicografia de Divaldo Pereira Franco

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