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28 junho 2016

A Menina que chorava na calçada - Hermínio C.Miranda




A MENINA QUE CHORAVA NA CALÇADA


NUMA DESSAS MANHÃS ensolaradas de domingo, saímos para a habitual caminhada pelas ruas mais tranqüilas do bairro em que moramos.

Logo ali em baixo, a uma quadra de distância, chorava uma menina na calçada. Não tinha mais que três ou quatro anos, era bonita e estava bem vestidinha, como se acabasse de se aprontar para um passeio. A poucos passos dela um jovem senhor contemplava-a, amargurado. Não era um choro escandaloso, birrento e malcriado, o dela, mas pranto sofrido, vindo de um sofrimento maior e mais profundo que se mostrava no seu olhar angustiado. A dor da querida e desconhecida irmãzinha doeu em mim também. Antes que desse conta do que fazia, aproximei-me dela e coloquei minha ternura de avô em algumas palavras de solidariedade e consolo. Por que razão estaria chorando aquele ser que apenas reiniciava suas experimentações com a vida? Não quis ser indiscreto, nem invasivo, dado que todos nós temos direito à privacidade, mas o jovem fez, voluntariamente, um comentário sucinto: a menina queria que a mãe também fosse com ela. Não me caberia perguntar mais nada e nem precisava. Desenhou-se logo todo o quadro.

Papai e mamãe estavam, certamente, separados. A justiça decidira que papai ficaria autorizado a vir buscá-la aos domingos para passar o dia com ele. Teria ele outra companheira?

Ou mamãe estaria de marido novo? Não sei. Para a menina que chorava na calçada, eles continuavam sendo papai e mamãe, só que, agora, separados. Falavam pouco ou nunca, um com o outro, mal se olhavam, pareciam inimigos. Mal começara a vida para ela e já as coisas mudavam de maneira brutal, no seu pequeno universo pessoal. De repente, ficaram confusas e incompreensíveis.

Por exemplo: por que razão mamãe não podia ir com ela passar o dia com papai?

Às vezes bem que a gente gostaria de fazer umas mágicas, como naquelas antigas histórias de fadas. Como a de reunir aquele triângulo, mãe, pai e filha. Mas isto importava desfazer outro triângulo, mamãe, papai e a ‘outra’, ou, quem sabe, papai, mamãe e o ‘outro’. Ou, então, pegar aquela criança ao colo e levá-la para uma terra onde ninguém se separasse de ninguém. Mas isso eu não podia fazer e ainda que pudesse, não o faria, sem interferir no livre-arbítrio de cada uma das pessoas envolvidas.

Tratava-se de um drama pessoal com várias pontas espinhentas que machucavam a todos, especialmente a sofrida menina que queria levar consigo a mãe naquele passeio de domingo de sol.

Só me restava seguir meu caminho e vê-los seguirem o deles. Seja como for, levei comigo um pouco daquela dor e deixei com a criança confusa uma vibração de ternura. Levei mais que isso, um tema para meditar.

Vindo de casamentos duradouros, minhas matrizes de avaliação de certas situações da vida encontram-se — reconheço-o honestamente —, talvez desatualizadas e inservíveis para muita gente. Mãe e pai, sogra e sogro só se separam pela morte. Ao escrever estas linhas, minha própria união já passou pelo marco número 50. Não posso, obviamente, responder pelos nossos antepassados; quanto a nós, contudo, sim, houve problemas de relacionamento ao longo do percurso. Quem não os tem? Ademais, estamos aqui precisamente para esmerilhar arestas, corrigir desafeições, ampliar afetos, cultivar entendimentos, pacificar antigos rancores, testemunhar dedicações e devotamentos. Se no primeiro ou no segundo embate, ou no centésimo, damos o processo de ajuste por encerrado, estaremos apenas adiando para não sei quando e onde e como, a oportunidade da paz. É que as harmonias da paz a gente não consegue comprar na farmácia, ou no supermercado — é trabalho lento e difícil para uma vida e até mais. 

Exige compreensão, tolerância e renúncia. O lar é um ponto de encontro, o momento cósmico é aquele, as condições estão ali criadas para que tudo dê certo e, se cada um tiver que tomar diferentes rumos após o trabalho da conciliação, partirão todos como amigos que apenas se despedem por algum tempo, com encontros marcados no futuro, para dar prosseguimento aos projetos em comum, e, portanto, para novas etapas evolutivas, dado que somos todos companheiros de viagem. Não adianta a gente abandonar de repente a tarefa do entendimento ou da convivência para seguir sozinho, mesmo que se esteja em condições de fazê-lo. Vai faltar alguma coisa no futuro. Alguma coisa que a gente deixou de fazer quando tinha tudo para concretizá-la.

Uma entidade espiritual contou-nos, a respeito disso, uma historinha ilustrativa. Ela —uma mulher, vinha caminhando com um companheiro de jornada evolutiva. Acerta altura, precisavam dar um passo decisivo. Figurativamente, pararam ambos a uns poucos passos de um portal que prenunciava nova etapa de realizações e progresso, dado que percebiam luzes brilhando lá adiante. Houve um momento de confabulação, pois ele relutava em seguir adiante. Acabaram separando-se. Ele ficou e ela foi em frente. Sofria, agora, por não ter insistido um pouco mais ou, quem sabe, ter permanecido com ele por mais algum tempo, até que ele se decidisse a acompanhá-la. Não o fez e, daquele momento em diante, cada um seguiu sua própria rota. Ela nos contava agora, em pranto, o desacerto da decisão. Perderam-se de vista por muito tempo. Ela caminhou um bom trecho pelos caminhos da luz, mas ele demorou-se pelos seus próprios espaços, provavelmente, porque não estavam mais juntos para negociar com a vida a estratégia da paz.

— É como se você tivesse, lá no futuro — contou ela —, um valioso tesouro guardado num cofre à sua espera. Você chega primeiro, mas o cofre só poderá ser aberto com duas chaves e você tem apenas a sua; a outra está com a pessoa que ficou para trás. Ou você a espera ou tem que ir buscá-la, para terem, juntos, acesso ao tesouro.

A história daquela irmã ficou em mim como uma parábola. Será que não estamos sendo impacientes demais com os companheiros de viagem? Será que um pouquinho mais de tolerância e compreensão não teriam evitado os desacertos?

A família é a nossa universidade. Ou saímos dela diplomados, com mestrado ou PhD concluídos, prontos para as conquistas pessoais, ou dela nos retiramos precipitadamente interrompendo o curso das esperanças. Tanto quanto pude apurar, na pesquisa feita para escrever a parte que me coube no livro de Deolindo Amorim, ainda não se chegou, após vários milênios de experimentação, a um modelo melhor de célula social do que a família. E posso garantir que não faltou experimentação. Tentou-se de tudo, numerosas fórmulas e processos foram testados, mas o modelo antigo resistiu. Se agora as coisas não estão dando certo, acham os entendidos que a falha não é do modelo, mas das pessoas.

Como não sou especialista do ramo, prefiro não entrar na discussão, o que não significa, de modo algum, que deixe de ter minha opinião a respeito. Tenho-a e muito nítida. Acho que se jogou fora a fórmula antes de ter uma que a substituísse com vantagens, se é que um dia a teremos. Penso mais ainda: que a falência do sistema começou a partir do momento em que se separou sexo para um lado e amor para outro. Vejo nessa dicotomia “amor sexo” a projeção, no plano em que vivemos, de outra dicotomia mais ampla, ou seja, matéria e espírito, na qual o amor é atributo da entidade espiritual e o sexo instrumentação meramente biológica, a fim de assegurar a todos renovadas oportunidades de reencarnação. Juntos, realizam a tarefa da continuidade da vida na carne, ao passo que a separação deles cria turbulências imprevisíveis, porque, desligado do componente espiritual do ser o sexo recorre ao artifício da paixão, que, em vez de chama que ilumina e aquece, é labareda que consome e logo se extingue, em sombras.

Enquanto nossas paixões vão e vêm, ofuscam-nos e apagam, sofrem os seres que se dispuseram a conviver conosco, nesta dimensão.

Conflitos entre pai e mãe, repercutem no âmago dos filhos, sopram-lhes temores aos ouvidos, criam para eles um clima de incertezas e insegurança, paralisam esperanças. Eles precisam de ambos para levar a bom termo o projeto de vida que lhes cabe implementar. Alguns deles vêm para a aventura da vida terrena com o propósito de cimentar a união, reparando fraturas remanescentes de passadas disputas. A tarefa da conciliação constitui elevada prioridade para todos e, por isso, não há esforço ou sacrifício, tolerância ou compreensão que sejam demais. Se o preço parece excessivamente alto é porque a dívida é, igualmente, vultosa.

Se, porém, a despeito de tudo o que for dito, planejado e considerado, a ruptura ocorre mesmo, pelo menos que se faça tudo civilizadamente, sem rancores ou agressões, com um mínimo possível de dor para todos, mas, principalmente, para os filhos.

Estou dramático? Talvez. Apocalíptico? Não. É o que vemos nos painéis que a vida em sociedade vem exibindo nestes tempos difíceis. Se, por acaso, você me perguntar que tenho eu a ver com isso, um septuagenário já no poente da existência, poderei dizer das minhas razões.

Há uns poucos anos, numa das viagens aos Estados Unidos, fui convidado para fazer uma palestra a um grupo de pessoas interessadas nos enigmas e perplexidades da vida. Não que eu tenha soluções prontas e acabadas para as mazelas humanas, mas porque venho insistindo teimosamente, obstinadamente, em que está fazendo uma falta terrível à sociedade em que vivemos a visão da realidade espiritual. Em vez de nos vermos como espíritos temporariamente acoplados a um corpo físico, assumimos a identidade desse corpo, confundimo-lo com a nossa própria individualidade e estamos levando o espírito a reboque, como um traste inútil e que, além de tudo, estaria atrapalhando a plena realização da insensatez que parece instalada na memória coletiva.

Mas e daí? Por que a preocupação, se já está chegando a hora de você ir embora, para essa dimensão cósmica da qual você tanto fala? — insistirá você. É simples, “meu caro minha querida”.

Esta não será, certamente, minha derradeira passagem pela matéria bruta. Terei que voltar para aqui de outras vezes, como também você. Ao retornar, em novo corpo físico, para mais uma existência, não me importa qual será a minha raça, cor, nacionalidade ou condição social. O que desejo, pretendo e peço a Deus é que tenha mãe e pai que se amem e que me amem. E que me proporcionem o apoio e o carinho de que vou necessitar até que possa recomeçar a exploração do mundo com meus próprios recursos. Foi o que disse aos americanos.

Não desejo, se isto for possível, ficar chorando em alguma esquina do mundo futuro, porque minha mãe não pode ficar junto de mim e de meu pai. Vou precisar deles, minuto por minuto, do amor que desejo que tenham por mim, tanto quanto do amor que tenham um pelo outro, por Deus e pela vida. Quero que me falem de Deus, me ensinem de novo a falar com ele, a vê-lo através das minhas lágrimas e a senti-lo em mim, nos momentos de harmonização cósmica. Como iria cumprir um programa desses

numa sociedade que se esqueceu d’Ele, tanto quanto de si mesma, porque só cuida do momento que passa e do próximo prazer? 

Do livro "Nossos Filhos São Espíritos", cap. 21, Hermínio Correa de Miranda

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