Não te importes com as coisas daí. Se não tens feitio para elas - que não tens - abandona-as e entrega-te somente àquelas que te não são desagradáveis de todo. Quebra essa indolência da tua vontade e liquida a tua situação.
Para que serve andares numa atafona (1), se não consegues com isso aditar mais um poalho (2) de farinha à tua moenda? Torna simples a tua vida. Afasta do teu cérebro as lucubrações permanentes, de ordem inferior, em que ele se gasta e estraga, como fino instrumento que trabalha obra grosseira.
Cada dia tem a sua ralação e bem te basta essa para te limar a vida. Não necessitas de as conservar em reserva, alimentando assim um mal-estar que te contorce a alma, como o fogo contorce uma barra de ferro.
Se não és ambicioso, que móbil te impulsiona para que te tragas numa luta permanente contra fatos que não podem influir favoravelmente no teu futuro?
Bem gasta ao teu viver os amargores que o sentimento lha dá. A esses não podes fugir. São da tua idiossincrasia. Provêm do teu modo de ser moral, que não é de fácil corrigenda. Esses não há que dar-lhes volta. Tens de aturá-los e só deves buscar moldá-los, quanto possível, ao teu bem-estar, quero dizer, tirar deles todo o proveito possível, com o menor dispêndio de energia e atribulação.
Compreendes muito bem que te não aconselho transigência com o que neles haja de mau. E tu deves saber muito bem já até onde vai neles o inofensivo e onde começa o prejudicial. Sabes, seguramente, que esse mal começa onde começa a ofensa consciente ou conhecida ao teu semelhante.
Quando vejas que um sentimento teu ou um teu ato, por melhor que se te afigure - vai, sem intenção nenhuma meritória ou útil, chocar com alguém, abstém-te de o animares ou executares. Entre um fato que te prejudique e outro que prejudique a outrem, não hesites em praticar o que te prejudica. Entre o sacrificares-te ou sacrificares os outros inutilmente, opta sempre pelo teu sacrifício.
Acima de tudo não te esqueças que junto a ti tens um guia ótimo: tua consciência. O que ela reprovar, não faças.
Procura, porém, saber sempre quando é a tua consciência que fala. Não a confundes com o egoísmo, com a fraqueza, com a falsa dignidade, com a convenção social, ou com qualquer outro dos cilícios que o homem inventou para se castigar.
Antes de pôr por obra um ato que à tua primeira impressão se afigure digno de reparo, perscruta bem o teu íntimo, não sejas ludíbrio de qualquer tentação de ruim sentimento com a falsa aparência de virtude. Não procures enganar a ninguém, mas a ti menos do que aos outros. Não deves jamais pensar coisa que não possas repetir em voz alta a ti próprio sem receio de reprovação. Sei que o cérebro é um prodigioso cadinho, onde se funde tudo que há de bom e mau, e que não está em nossa mão fechar a porta por onde entram os pensamentos condenáveis. Mas, se é um cadinho que sirva para depurar o que nele se lançar, de modo a poder deitar-se fora as impurezas e recolher só o metal puro; e se não temos meio de impedir que más ideias povoem o nosso pensamento, temos meios eficazes e enérgicos de os repelir e rechaçar. O que o não fizer, por prazer, faz mal; o que não fizer, por fraqueza ou por comodismo, não fará melhor.
Não queiras nunca mascarar as tuas conveniências inconfessáveis aos avisos e rebates da tua consciência. Não é a esta que iludes: - é o teu futuro que prejudicas.
Eu sei que há atos suscetíveis de uma reprovação momentânea e que não têm a menor influência no futuro de uma alma; mas é porque essa reprovação não parte da consciência. A consciência conserva-se-lhes indiferente; a reprovação parte só do egoísmo, da falsa moral, da convenção, da ambição, da avareza, do comodismo, ou de outro fator semelhante, que a falta de observação rigorosa pode fazer confundir, ao primeiro exame, com a consciência.
É necessário não baralhar. Desentranha a consciência da aluvião de preconceitos e cálculos que se lhe foram misturando e aderindo pela tua vida adiante. Aperta-a, desconfunde-a, forma-lhe altar separado e deixa-te guiar por ela, ainda que o mundo te lapide.
Não te importes com as vozes do mundo, quando elas vão de encontro à tua consciência. Não é por essas vozes que tens de responder, mas pelo que ela te acusar.
Despreza as pompas, as veneras (3), os elogios, os turibulários (4), quando se não ajustem à impressão clara e nítida da tua consciência; e ri-te dos seus apodos (5), das suas imprecações e dos seus desprezos, quando intimamente sentires que não procedeste mal. Há escuros na alma que nenhum esplendor terreno pode iluminar.
Deixa que os outros falem. Será louco quem aspirar a bem merecer de todo. Não te dou novidades no que te digo, mas tenho a satisfação de supor que te faço bem em dizer-to. Quando mais não seja, dando-te o prazer, que toda a gente sente, ao ver as suas opiniões partilhadas por mais alguém.
E, por agora, meu amigo, nada mais.
Espírito de Alexandre Herculano*
Médium: Fernando de Lacerda - Do País da Luz
Notas do compilador:
1 - atafona = moinho manual ou movido por cavalgaduras;
2 - poalho = poeira leve em suspensão no ar;
3 - veneras = condecorações;
4 - turibulários = aduladores;
5 - apodos = comparações ridículas, zombarias, alcunhas
*Alexandre Herculano, historiador, romancista e poeta português (1810-1877), de vasta erudição, estilo grave e solene, e de linguagem de vernaculidade modelar, foi o criador do romance histórico português. Dentre suas obras destacam-se o "Monge de Cister" e "Eurico, o presbítero". A presente mensagem foi dirigida ao médium que passava por sérios apuros com os seus detratores.
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