FÉ RACIOCINADA
“Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.” (1)
Em torno da fé existem inúmeras
afirmativas negando-lhe o caráter racional. Segundo alguns teólogos,
raciocina-se sobre a crença, mas não sobre a fé. A fé, segundo eles, é
uma virtude, um dom que transcende a própria razão.
Por colocarem-na como virtude ou dom
transcendental, pertencente exclusivamente à área do sentimento, é que
muitas pessoas confundem emoção com fé. Por isso, é comum pessoas
dizerem ter sentido uma fé imensa, capaz de levá-las a grandes
realizações, no momento em que ouviam o relato de passagens do
Evangelho, ou de ações levadas a efeito por benfeitores da Humanidade,
ou até mesmo em decorrência da simples leitura de uma página edificante.
A emoção, a vibração espiritual que os atos nobres suscitam nas almas
já portadoras de alguma sensibilidade não pode ser confundida com fé. O
estado emocional é transitório, enquanto a fé é permanente. A emoção, se
analisada e orientada pela inteligência, pode ser auxiliar valiosa para
levar a criatura a modificar-se para melhor. Entretanto, se não for
esclarecida pela razão pode conduzir ao fanatismo, à chamada fé cega,
que é a negação da própria fé.
O mundo está cheio de exemplos tristes
dos frutos do fanatismo religioso. Em nome da fé, quantas perseguições,
quantas mortes e até guerras? Ainda nos dias atuais, principalmente na
semana santa, existem pessoas que vertem seu próprio sangue, ferindo
seus corpos, ou se entregam a privações terríveis no intuito de mostrar
sua fé em Deus. Se raciocinassem, veriam que Deus, como Pai amoroso, bom
e misericordioso, nunca poderia ser homenageado com o derramamento do
sangue dos Seus filhos. Essa concepção de um deus sanguinário,
combateu-a o Profeta Elias, séculos antes de Jesus, quando enfrentou os
sacerdotes adoradores do deus Baal. (I Reis, 18: 22 a 40).
Aprende-se no Espiritismo que, na sua
caminhada evolutiva, o Espírito vai conhecendo as leis de Deus, vai
percebendo-lhes a perfeição e, quanto mais as conhece, mais se
identifica com elas, mais confia na justiça e no amor do Criador, mais
se conscientiza da Sua perfeição, mais tem fé. Essa a fé que nasce do
entendimento. Inabalável, indestrutível.
Emmanuel ensina: “Ter fé é guardar no
coração a luminosa certeza em Deus, certeza que ultrapassou o âmbito da
crença religiosa, fazendo o coração repousar numa energia constante de
realização divina da personalidade. Conseguir a fé é alcançar a
possibilidade de não mais dizer eu creio, mas afirmar eu sei, com todos
os valores da razão, tocados pela luz do sentimento.” (2).
A fé que o Espiritismo preconiza não é
uma fé contemplativa, capaz de levar uma pessoa à imobilidade, em
situações de êxtase, em que fica aguardando providências de Deus em seu
favor. Ao contrário, é uma fé dinâmica, edificada vagarosa e
conscientemente pelo Espírito, à medida que evolui, conforme ensina
Emmanuel: “A árvore da fé viva não cresce no coração miraculosamente. A
conquista da crença edificante não é serviço de menor esforço. A maioria
das pessoas admite que a fé constitua milagrosa auréola doada a alguns
espíritos privilegiados pelo favor divino.” (3)
A fé espírita não é aquela que se fixa
em objetos materiais como cruzes, escapulários, bentinhos, talismãs,
amuletos, medalhas, etc. O espírita tem fé em Deus, em Jesus, nos bons
Espíritos, entidades dotadas de sentimento e de inteligência, seres
capazes de movimentar recursos em seu favor. Essa fé é muito diferente
da crença infantil num pretenso poder mágico de objetos materiais, que
não poderiam jamais movimentar, com inteligência e sentimento, recursos a
benefício de alguém.
Entretanto, é lícito se indague sobre a
origem da fé raciocinada. Teria ela nascido com o Espiritismo? Não, a
fé raciocinada nos vem de Jesus, dos ensinamentos do seu Evangelho. O
Mestre mudou completamente o próprio conceito de religião, introduzindo
no campo até então puramente emocional da fé, o componente razão,
entendimento. Ninguém, até Jesus, fez tantos apelos ao raciocínio no
âmbito religioso. Kardec, conhecedor profundo da atuação de Jesus, o
conhecia, não como um místico, mas como um educador de almas que, ao
tempo em que tocava o sentimento daqueles que o ouviam, sabia também
levá-los ao entendimento das lições.. Por isso, tem a Doutrina Espírita
essa característica de racionalidade. E não podia ser de outra forma, de
vez que ao Espiritismo coube o papel de reviver o Cristianismo na sua
pureza, simplicidade e pujança originais.
Jesus nunca explorou a emoção de
ninguém. Sua fala, mansa e humilde, precisa e firme, era dirigida ao
sentimento e à inteligência. Suas lições foram sempre pautadas no
diálogo, através do qual propunha o exame racional daquilo que ensinava.
Censurado por haver curado uma mulher
paralítica num sábado, bem poderia deixar que a própria cura falasse por
ele, mas não perdeu a oportunidade de, através de uma pergunta, fazer
pensar aqueles que o ouviam: “(...) no sábado não desprende da
manjedoura cada um de vós o seu boi, ou o jumento, e não o leva a beber?
E não convinha soltar desta prisão, no dia de sábado, esta filha de
Abraão, a qual há dezoito anos Satanás a tinha presa?” (Lc, 13: 15 e
16).
De outra feita, ele próprio perguntou
aos doutores da lei, antes de curar um homem: “É lícito curar no
sábado?” (Lc, 14: 3). Como não respondessem, Jesus curou o hidrópico e o
despediu. Depois, ele volta a inquiri-los, a fim de conscientizá-los de
que acima da letra morta há uma interpretação racional, inteligente:
“Qual de vós o que, caindo-lhe num poço, em dia de sábado, o jumento ou o
boi, o não tire logo?” (Lc, 14: 5).
“E orando, não useis de vãs
repetições...” (Mt, 6: 7). Quer o Mestre dizer que devemos orar com
plena consciência daquilo que falamos, que a nossa oração não seja uma
repetição emocional de uma fórmula decorada, como se fosse algo recitado
ou declamado. Ao contrário, que seja uma mensagem conscientemente
elaborada, com um conteúdo de comunicação dirigida ao Alto, e que não
seja uma simples ladainha.
Jesus, ao conversar com a samaritana, à
beira do poço de Jacó, demonstra que não necessitava de inquirir alguém
para informar-se de algo. Ali deixa claro para ela que conhecia-lhe o
passado como a palma de sua mão. (Jo, 4: 17). Entretanto, freqüentemente
fazia perguntas para suscitar dúvida no seu interlocutor, a fim de
fazê-lo pensar, raciocinar e não receber passivamente um ensinamento:
“Qual é mais fácil? Dizer: Os teus pecados te são perdoados; ou dizer:
Levanta-te e anda?” (Lc, 5: 23).
Ao invés de fazer um discurso eloqüente
e emocionado sobre a Providência Divina, o Mestre busca, através de
perguntas, levar seus ouvintes a pensarem, a raciocinarem sobre Deus.
Depois de lhes ter falado sobre os lírios do campo, dizendo que Deus os
veste, e compara sua vestimenta ao luxo do rei Salomão: “Pois, se Deus
assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no
forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?” (Mt, 6:
30).
“E qual de vós é o homem que,
pedindo-lhe pão o seu filho, lhe dará uma pedra? E, pedindo-lhe peixe,
lhe dará uma serpente? Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas
aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará bens
aos que lhos pedirem?” (Mt, 7: 9 a 11). Também por essa passagem pode-se
ver que Jesus não buscava levar ninguém a uma adoração emotiva, a uma
fé cega. Ele poderia ter dito, por exemplo que se deve ter fé em Deus,
criador de tudo o que existe, que é bom, amoroso, misericordioso,
providente etc. Mas não, só isso não bastava. Se ficasse só nessas
afirmações, teria suscitado uma fé passiva. Ele queria fazer as
criaturas entenderem, através de uma comparação, que o Todo Poderoso
deveria ser, necessariamente, melhor que um pai terreno e, portanto,
capaz de dar maiores bens aos Seus filhos.
Os apelos que Jesus, nas suas lições,
fazia não só ao sentimento, mas também à inteligência, foi objeto de
estudo até mesmo fora do ambiente religioso, por um médico psiquiatra,
Augusto Jorge Cury, quando diz: “... ele não anulava arte de pensar, ao
contrário, era um mestre intrigante nessa arte. Cristo não discorria
sobre uma fé sem inteligência. Para ele, primeiro se deveria exercer a
capacidade de pensar e refletir antes de crer, depois vinha o crer sem
duvidar. Se estudarmos os quatro evangelhos e investigarmos a maneira
como Cristo regia e expressava seus pensamentos, constataremos que
pensar com liberdade e consciência era uma obra-prima para ele.” (4)
O trecho do Novo Testamento que mais
evidencia o ambiente pedagógico, de diálogo, de liberdade de análise, na
busca de esclarecimentos, que Jesus propiciava a todos que ouviam-lhe
as lições é, certamente, o assim chamado “A Transfiguração”. Registra
Mateus, no capítulo 17, que Jesus subiu a um alto monte, acompanhado de
Pedro, Tiago e João. O Mestre orou e se transfigurou, cobrindo-se de
luz, ao tempo em que apareceram – seguramente materializados, pois que
os três discípulos os viram – Moisés e Elias, que conversaram com ele.
Passado o momento sublime, ao regressarem, o Mestre ordena aos
discípulos que não contem nada do que acontecera até ele ressuscitasse. É
de se imaginar o contentamento e a emoção que devem ter sentido aqueles
discípulos ao contemplarem Jesus coberto de luz, Moisés, o pai dos
profetas, e o grande profeta Elias. Entretanto, eles não se detiveram
em atitude de contemplação mística, de deslumbramento. Pelo contrário, o
raciocínio funcionou imediatamente, na busca de resposta para algo que
lhes pareceu estranho: “E os discípulos o interrogaram, dizendo: Por que
dizem então os escribas que é mister que Elias venha primeiro?” (Mt,
17: 10). Por que a pergunta? Ora, havia sido predito pelos profetas – e
os escribas sempre o repetiam – que o Mestre seria precedido por Elias,
que voltaria para preparar-lhe o caminho. Os discípulos, vendo Elias
desencarnado, deduziram que algo estava errado: ou as profecias não
espelhavam a verdade, ou aquele que se apresentara e conversara com
Jesus não era Elias, ou Jesus não era o Messias! Jesus, com a
tranqüilidade daqueles que detêm a verdade, respondendo, disse-lhes:
“Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe o
que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem.” (Mt,
17: 12). E, em seguida, conclui o Evangelista: “Então entenderam os
discípulos que lhes falara de João Batista.” (Mt, 17: 13). Tudo estava
certo. A profecia já se havia cumprido. (5)
Diante do que se acabou de ver,
conclui-se que Jesus foi um pedagogo e não um místico. Sabia atrair seus
ouvintes com as doces consolações da fé, mas não alimentava atitudes de
deslumbramento contemplativo, face aos apelos ao raciocínio com que
mesclava suas sublimes lições. Encaminhava-os ao entendimento lógico,
racional dos fatos! Jesus, como Mestre admirável que foi, soube criar um
clima de diálogo aberto. Foi essa liberdade que levou os discípulos a
buscarem imediatamente esclarecimento sobre a aparição de Elias, embora a
pergunta formulada por eles contivesse embutido um grave
questionamento, qual seja o da própria condição de Messias do seu
Mestre. Jesus não se sente agastado e, com a segurança daqueles que
estão com a Verdade, os esclarece. Assim, vê-se claramente que Jesus não
impunha suas idéias, não violentava consciências, nem exigia fé cega,
sem exame. Não. Sua mensagem sempre foi dirigida ao intelecto e ao
sentimento, bases legítimas da fé raciocinada, que o Espiritismo veio
reviver.
Referências:
1. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 9, item 7
1. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 9, item 7
2. O Consolador, perg. 354
3. Caminho, Verdade e Vida, cap. 40
4. Análise da Inteligência de Cristo, pág. 18
5. Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira d'Almeida (todas as citações)
José Passini
Publicado no Reformador – fev. 2005
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