A DELICADA E FEMININA QUESTÃO DO ABORTO
Dado o caso que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da mãe, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?
Resposta: Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.
“O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, questão 359.
Já pensei várias vezes em escrever sobre aborto, assunto que requer vários ângulos de compreensão e compaixão. Sempre esbarrei, no entanto, nas seguintes considerações: eu tenho útero, vulva, clitóris, trompas e ovário? Eu ovulo, menstruo, corro o risco de ser assediado sexualmente, ser estuprado e passar por uma gravidez de baixo ou alto risco? A resposta será sempre não por uma simples razão: sou do sexo masculino. Por essa razão, não tenho como avaliar as dores e delícias de ser mulher e mãe. Eu não sinto isso na pele.
Dou início dizendo o óbvio porque me assusta a quantidade de homens – incluindo alguns espíritas – que vão para os púlpitos, tribunas e similares criticar com veemência a mulher que faz aborto; legislar de forma a criminalizá-las; condená-las ao inferno, umbral, reencarnações dolorosas e similares. Dizia o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que “O homem é produto do meio”. Sendo assim, por estarmos num país machista, muitos homens espíritas não deixam de sê-lo, apesar de serem espíritas.
Se o espiritismo é ciência, filosofia e religião, por que muitos de seus profitentes se agarram ao aspecto religioso, levam-no para os confins do medievalismo e transformam a doutrina codificada por Kardec em algo rígido que condena mulheres que praticaram aborto a duras penas? Onde o “Amai-vos uns aos outros”? Onde o “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”? Onde a solidariedade que acolhe e a compaixão que cura as feridas morais? Onde a empatia para nos colocarmos no lugar dessas mulheres? Onde, enfim, a ciência que analisa e a filosofia que nos ensina a relativizar e contextualizar os fatos, a fim de percebermos que cada caso é um caso e que não podem ser analisados sob a mesma ótica? Sim; cada aborto é um aborto. Cada um deles contém meandros que envolvem a vida íntima da mulher, o ambiente em que ela foi criada, os sentimentos (raiva, medo, angústia, desespero etc.) pelos quais ela está passando, sua situação socioeconômica, entre outros tantos e tantos fatores.
Resolvi escrever a respeito de tão delicado e ao mesmo tempo espinhoso tema depois do ocorrido com a menina capixaba de 10 anos. Desde os 6 anos, ela era sistematicamente estuprada por um tio. O Brasil inteiro começou a opinar, incluindo vários representantes do movimento espírita que, por serem espíritas, acreditam ter opinião formada e definitiva a respeito de tudo. Não temos, convém frisar. O fato de sermos espíritas não nos dá pleno conhecimento e autoridade para emitirmos opiniões definitivas sobre todo e qualquer tema. Bem melhor analisarmos cada situação separadamente, à luz da razão, como preconiza Allan Kardec.
Recebi pela rede social messeger uma postagem de Marcos (nome fictício), presidente de centro espírita. Ela dizia respeito a uma visita que um grupo de católicos fez ao hospital onde foi realizado o aborto legal, enfatizo. Os católicos queriam que a gestação fosse levada a termo, pois já tinham uma família disposta a adotar o bebê. Mas, como se sabe, a gravidez – de risco, diga-se – foi interrompida, conforme preconiza a lei brasileira, que autoriza a cessação da gravidez em casos de estupro.
Perguntei a Marcos se ele também achava que o aborto deveria ser impedido. A resposta é um fiel retrato de como pensa a fatia conservadora e machista do movimento espírita: “Por acreditar que Deus permitiu a gravidez e que Deus não erra, sou contra qualquer aborto. Além disso, precisamos considerar as consequências para todos os espíritos envolvidos neste caso”.
Atônito, perguntei se ele achava que Deus também permitiu que a menina fosse estuprada pelo tio. Aproveitei o ensejo e lembrei-lhe que, há alguns anos, ocorreu um caso semelhante em Alagoas, se não me engano. Uma menina de 11 anos fora estuprada, engravidara de gêmeos e fora submetida ao aborto terapêutico. Ante a gritaria de vários religiosos, à época, Gérson Simões Monteiro, palestrante e escritor espírita do RJ, defendeu o aborto nesse caso específico. Afinal, tratava-se de uma criança vítima de estupro submetida a uma gravidez com alto potencial para tirar-lhe a vida. Gérson reiterou, ainda, que, se fosse o caso de os gêmeos estarem programados para serem filhos dela, a Providência Divina daria o ensejo de, mais adiante, ela ser mãe de ambos, já adulta e senhora de si. Como Marcos retrucou e começamos a ir para o desagradável terreno da troca de farpas, encerramos o assunto.
Muito me choca a postura conservadora e embotada desse tipo de espírita. Assim como o caso defendido pelo Gérson, a menina do ES não tinha estrutura física para levar uma gravidez até o fim. O risco de que ela perecesse era alto. Num caso grave como esse, é melhor o espírita posicionar-se a favor da proteção da menina e para que o tio estuprador responda pelo crime que cometeu. Isso não significa gritar palavras encolerizadas para que a lei seja severa. O caso precisa ser apurado; o culpado (ou culpados) tem de responder pelo que fizeram. No entanto, não percamos de vista a piedade para com os criminosos.
Depois desse entrevero entre mim e Marcos, resolvi dar uma olhada no perfil de alguns espíritas que, em geral, se posicionam contra o aborto. Vi homens e mulheres preocupados somente com o feto, gente sugerindo o que a menina e familiares deveriam fazer após o nascimento da criança. Isso sem falar nos vídeos em que expositores (homens, em sua maioria) falam que tudo estava programado, que a menina tinha de passar pela prova da gravidez em tenra idade, que decerto algo de errado ela fez no passado, que o referido aborto havia sido um crime… Deparei-me também com uma nota seca e cruel da Associação Médico Espírita (AME), que deixa um rastro de punição e passa longe do carinho que deveria receber uma criança de 10 anos vítima de uma violência abjeta. Tão fácil deliberar sobre a vida alheia e fazer generalizações rasteiras tendo a doutrina espírita como pretexto! Por favor, companheiros de ideal espírita, tenhamos delicadeza ante a dor alheia!
Confesso que teria me sentido confortado se tivesse visto mais espíritas saindo em defesa de uma criança que deve ter vivido dias infernais nos últimos quatro anos. Um inferno que deve ter sido um misto de ansiedade, revolta, medo, depressão, sensação de abandono, carência, desespero…
Eu sou contra o aborto, é bom salientar! Seis das implicações espirituais que ele acarreta. Mas também sei que Deus é misericordiosamente justo e bom e que não analisará todos os abortos sob a mesma ótica. Cada caso é um caso e depende de diversas circunstâncias (culturais, familiares, sociais, econômicas, psicológicas etc.). Isso tem a ver com não julgar, acolher, ajudar e por aí vai. A lei é de amor, não nos esqueçamos! Ainda mais quando se trata de uma garotinha seviciada por quatro anos!
O jornalista e ambientalista André Trigueiro (que é espírita), em transmissão ao vivo realizada pela rede social Instagram na manhã de 18 de agosto de 2020, observou que a menina, segundo informado pela avó, vinha tendo crises de histeria por não querer o filho que o tio lhe impôs. E que, no hospital de Recife (PE), onde foi realizado o aborto autorizado pela justiça, é feito, toda semana, pelo menos um procedimento semelhante em menores de idade vítimas de estupro, conforme declaração do diretor da instituição. Ou seja, a questão é bem mais grave do que se pensa neste Brasil carente de educação, saúde, qualidade de vida, justiça, cidadania, amparo social… Carências que resultam em problemas de variada monta. Entre eles, crianças sendo violentadas.
Analisando os fundamentalistas de direita que se dizem cristãos e que foram para a porta do hospital ofender a menina e a equipe médica, André salientou ser muito o grave o fato de confundirmos o público com o privado. André é contra o aborto, assim como eu e todos os espíritas, creio. Mas isso é uma questão nossa. Uma questão privada, de foro íntimo.
O Estado, todavia, é laico, ou seja, não tem religião. Por isso, é muito absurdo querer que todas as pessoas enxerguem a interrupção proposital da gravidez da mesma forma que a minha religião enxerga. Por isso, em vez de julgar com impiedade e frieza uma criança de 10 anos, o melhor que temos a fazer é respeitar a cidadania e o direito legal que uma menina ou mulher possui de passar pelo procedimento do aborto caso tenha sido violentada. Não é caridoso, nessas horas, querer enfiar conceitos espíritas pela goela alheia.
Volto à questão dos homens que levantam a voz contra o aborto. O Congresso Nacional é composto, em sua maioria, por deputados e senadores do sexo masculino. Muitos deles, profitentes de religiões conservadoras. E machistas também. Homens que, assim como eu, não possuem trompa, útero e afins. Tampouco correm o risco de estupro ou de passar por uma gravidez de risco. Em vez de condenarem a mulher que aborta, por que não elaboram leis que punam o homem que aborta? Será que o machismo corporativo não permite? Afinal, quando uma mulher recorre ao aborto, o homem que a engravidou já abortou a criança antes, seja abandonando a parceira, mandando ela se virar, fugindo para não pagar pensão ou para não ser preso etc.
Não seria melhor todos os homens, sem exceção, se meterem o menos possível no assunto e deixarem as mulheres decidirem o que melhor lhes convém? Falo sobre deputadas e senadoras reunidas com mulheres representantes de vários segmentos sociais e profissionais para legislarem em causa própria. Fica a sugestão.
Dou início dizendo o óbvio porque me assusta a quantidade de homens – incluindo alguns espíritas – que vão para os púlpitos, tribunas e similares criticar com veemência a mulher que faz aborto; legislar de forma a criminalizá-las; condená-las ao inferno, umbral, reencarnações dolorosas e similares. Dizia o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que “O homem é produto do meio”. Sendo assim, por estarmos num país machista, muitos homens espíritas não deixam de sê-lo, apesar de serem espíritas.
Se o espiritismo é ciência, filosofia e religião, por que muitos de seus profitentes se agarram ao aspecto religioso, levam-no para os confins do medievalismo e transformam a doutrina codificada por Kardec em algo rígido que condena mulheres que praticaram aborto a duras penas? Onde o “Amai-vos uns aos outros”? Onde o “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”? Onde a solidariedade que acolhe e a compaixão que cura as feridas morais? Onde a empatia para nos colocarmos no lugar dessas mulheres? Onde, enfim, a ciência que analisa e a filosofia que nos ensina a relativizar e contextualizar os fatos, a fim de percebermos que cada caso é um caso e que não podem ser analisados sob a mesma ótica? Sim; cada aborto é um aborto. Cada um deles contém meandros que envolvem a vida íntima da mulher, o ambiente em que ela foi criada, os sentimentos (raiva, medo, angústia, desespero etc.) pelos quais ela está passando, sua situação socioeconômica, entre outros tantos e tantos fatores.
Resolvi escrever a respeito de tão delicado e ao mesmo tempo espinhoso tema depois do ocorrido com a menina capixaba de 10 anos. Desde os 6 anos, ela era sistematicamente estuprada por um tio. O Brasil inteiro começou a opinar, incluindo vários representantes do movimento espírita que, por serem espíritas, acreditam ter opinião formada e definitiva a respeito de tudo. Não temos, convém frisar. O fato de sermos espíritas não nos dá pleno conhecimento e autoridade para emitirmos opiniões definitivas sobre todo e qualquer tema. Bem melhor analisarmos cada situação separadamente, à luz da razão, como preconiza Allan Kardec.
Recebi pela rede social messeger uma postagem de Marcos (nome fictício), presidente de centro espírita. Ela dizia respeito a uma visita que um grupo de católicos fez ao hospital onde foi realizado o aborto legal, enfatizo. Os católicos queriam que a gestação fosse levada a termo, pois já tinham uma família disposta a adotar o bebê. Mas, como se sabe, a gravidez – de risco, diga-se – foi interrompida, conforme preconiza a lei brasileira, que autoriza a cessação da gravidez em casos de estupro.
Perguntei a Marcos se ele também achava que o aborto deveria ser impedido. A resposta é um fiel retrato de como pensa a fatia conservadora e machista do movimento espírita: “Por acreditar que Deus permitiu a gravidez e que Deus não erra, sou contra qualquer aborto. Além disso, precisamos considerar as consequências para todos os espíritos envolvidos neste caso”.
Atônito, perguntei se ele achava que Deus também permitiu que a menina fosse estuprada pelo tio. Aproveitei o ensejo e lembrei-lhe que, há alguns anos, ocorreu um caso semelhante em Alagoas, se não me engano. Uma menina de 11 anos fora estuprada, engravidara de gêmeos e fora submetida ao aborto terapêutico. Ante a gritaria de vários religiosos, à época, Gérson Simões Monteiro, palestrante e escritor espírita do RJ, defendeu o aborto nesse caso específico. Afinal, tratava-se de uma criança vítima de estupro submetida a uma gravidez com alto potencial para tirar-lhe a vida. Gérson reiterou, ainda, que, se fosse o caso de os gêmeos estarem programados para serem filhos dela, a Providência Divina daria o ensejo de, mais adiante, ela ser mãe de ambos, já adulta e senhora de si. Como Marcos retrucou e começamos a ir para o desagradável terreno da troca de farpas, encerramos o assunto.
Muito me choca a postura conservadora e embotada desse tipo de espírita. Assim como o caso defendido pelo Gérson, a menina do ES não tinha estrutura física para levar uma gravidez até o fim. O risco de que ela perecesse era alto. Num caso grave como esse, é melhor o espírita posicionar-se a favor da proteção da menina e para que o tio estuprador responda pelo crime que cometeu. Isso não significa gritar palavras encolerizadas para que a lei seja severa. O caso precisa ser apurado; o culpado (ou culpados) tem de responder pelo que fizeram. No entanto, não percamos de vista a piedade para com os criminosos.
Depois desse entrevero entre mim e Marcos, resolvi dar uma olhada no perfil de alguns espíritas que, em geral, se posicionam contra o aborto. Vi homens e mulheres preocupados somente com o feto, gente sugerindo o que a menina e familiares deveriam fazer após o nascimento da criança. Isso sem falar nos vídeos em que expositores (homens, em sua maioria) falam que tudo estava programado, que a menina tinha de passar pela prova da gravidez em tenra idade, que decerto algo de errado ela fez no passado, que o referido aborto havia sido um crime… Deparei-me também com uma nota seca e cruel da Associação Médico Espírita (AME), que deixa um rastro de punição e passa longe do carinho que deveria receber uma criança de 10 anos vítima de uma violência abjeta. Tão fácil deliberar sobre a vida alheia e fazer generalizações rasteiras tendo a doutrina espírita como pretexto! Por favor, companheiros de ideal espírita, tenhamos delicadeza ante a dor alheia!
Confesso que teria me sentido confortado se tivesse visto mais espíritas saindo em defesa de uma criança que deve ter vivido dias infernais nos últimos quatro anos. Um inferno que deve ter sido um misto de ansiedade, revolta, medo, depressão, sensação de abandono, carência, desespero…
Eu sou contra o aborto, é bom salientar! Seis das implicações espirituais que ele acarreta. Mas também sei que Deus é misericordiosamente justo e bom e que não analisará todos os abortos sob a mesma ótica. Cada caso é um caso e depende de diversas circunstâncias (culturais, familiares, sociais, econômicas, psicológicas etc.). Isso tem a ver com não julgar, acolher, ajudar e por aí vai. A lei é de amor, não nos esqueçamos! Ainda mais quando se trata de uma garotinha seviciada por quatro anos!
O jornalista e ambientalista André Trigueiro (que é espírita), em transmissão ao vivo realizada pela rede social Instagram na manhã de 18 de agosto de 2020, observou que a menina, segundo informado pela avó, vinha tendo crises de histeria por não querer o filho que o tio lhe impôs. E que, no hospital de Recife (PE), onde foi realizado o aborto autorizado pela justiça, é feito, toda semana, pelo menos um procedimento semelhante em menores de idade vítimas de estupro, conforme declaração do diretor da instituição. Ou seja, a questão é bem mais grave do que se pensa neste Brasil carente de educação, saúde, qualidade de vida, justiça, cidadania, amparo social… Carências que resultam em problemas de variada monta. Entre eles, crianças sendo violentadas.
Analisando os fundamentalistas de direita que se dizem cristãos e que foram para a porta do hospital ofender a menina e a equipe médica, André salientou ser muito o grave o fato de confundirmos o público com o privado. André é contra o aborto, assim como eu e todos os espíritas, creio. Mas isso é uma questão nossa. Uma questão privada, de foro íntimo.
O Estado, todavia, é laico, ou seja, não tem religião. Por isso, é muito absurdo querer que todas as pessoas enxerguem a interrupção proposital da gravidez da mesma forma que a minha religião enxerga. Por isso, em vez de julgar com impiedade e frieza uma criança de 10 anos, o melhor que temos a fazer é respeitar a cidadania e o direito legal que uma menina ou mulher possui de passar pelo procedimento do aborto caso tenha sido violentada. Não é caridoso, nessas horas, querer enfiar conceitos espíritas pela goela alheia.
Volto à questão dos homens que levantam a voz contra o aborto. O Congresso Nacional é composto, em sua maioria, por deputados e senadores do sexo masculino. Muitos deles, profitentes de religiões conservadoras. E machistas também. Homens que, assim como eu, não possuem trompa, útero e afins. Tampouco correm o risco de estupro ou de passar por uma gravidez de risco. Em vez de condenarem a mulher que aborta, por que não elaboram leis que punam o homem que aborta? Será que o machismo corporativo não permite? Afinal, quando uma mulher recorre ao aborto, o homem que a engravidou já abortou a criança antes, seja abandonando a parceira, mandando ela se virar, fugindo para não pagar pensão ou para não ser preso etc.
Não seria melhor todos os homens, sem exceção, se meterem o menos possível no assunto e deixarem as mulheres decidirem o que melhor lhes convém? Falo sobre deputadas e senadoras reunidas com mulheres representantes de vários segmentos sociais e profissionais para legislarem em causa própria. Fica a sugestão.
Marcelo Teixeira
Fonte: Associação Brasileira de Pedagogia Espirita (ABPE)
Fonte: Associação Brasileira de Pedagogia Espirita (ABPE)
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