Sônia ressalta que não basta ser espírita; é preciso ser um bom espírita! E isso, acrescento, é porque o dito de Constantino está em um livro espírita. Se fosse num livro importante de outra religião, lá estaria escrito bons católicos, bons muçulmanos, bons evangélicos, bons judeus etc. E os ateus? Bem, acredito que, se houvesse uma espécie de livro sagrado dos ateus, estaria lá grafado: bons ateus.
Saindo do âmbito religioso, se dermos uma boa lida no código de ética de várias profissões, encontraremos não de forma explícita, mas nas entrelinhas, o seguinte: bons médicos, bons assistentes sociais, bons jornalistas, bons pedagogos, bons psicólogos… E mesmo nas profissões de saber não acadêmico, mas técnico, encontraremos contida, no dia a dia do profissional, algo similar a bons motoristas, bons encanadores, bons eletricistas e por aí vai. Isso porque, segundo a questão 621 de “O livro dos espíritos”, também de Kardec, a lei de Deus está escrita na consciência. Ninguém, portanto, precisa ser espírita para saber o que é agir corretamente dentro da profissão, sem dores de consciência. Isso significa amor ao próximo, um dito do Cristo que está implícito no modus operandi da nossa sociedade, quer percebamos, quer não.
Voltando ao tema que dá título a esse artigo, religião não é salvo conduto para ninguém, muito menos para os espíritas, que, muitas vezes, se acham uma espécie de povo escolhido por ter mais acesso às verdades além-túmulo. Não somos uma confraria de eleitos pelo Senhor porque somos espíritas. Isso não existe. Ser espírita não é suficiente. É preciso ser um bom espírita.
E como se reconhece o bom espírita? “Pela sua transformação moral e pelo esforço que empreende para domar as más tendências”, como diz o item 4 (não por acaso intitulado ‘Os bons espíritas’) do capítulo 17 também de “O Evangelho segundo o espiritismo”.
O bom espírita é, desse modo, alguém que está tentando melhorar a si próprio, não aos outros.
Resolvi escrever a esse respeito porque já vi muitos espíritas deveras preocupados em policiar o comportamento alheio para ficar se comparando – e se achando melhor – do que esse ou aquele trabalhador ou frequentador do centro. É o espírita que se acha mais espírita que o outro espírita.
Depois de muito pensar a respeito, criei um personagem chamado João, o espiritão. Trata-se daquela figura folclórica, caricata até, que inventou um modelo de espírita a ser seguido e acredita piamente que se encaixa nele com perfeição. João, o espiritão, e os que em torno dele gravitam costumam pensar da seguinte forma:
– João é heterossexual. Leonardo é gay. Ah, então João é muuuito mais espírita que Leonardo!
– João está casado há mais de 30 anos com a mesma mulher. Fábio é divorciado. Ah, então João é muuuuito mais espírita que Fábio!
– João, no carnaval, participa dos encontros de mocidade e da família que o movimento espírita promove. Samuel, há muitos anos, junto com um grupo de amigos, desfila no Salgueiro. Ah, aí não tem nem comparação! João é muuuuuuuuuuuito mais espírita que Samuel!
Quem disse que é assim que a banda toca? Quem disse que existe uma receita de bolo prontinha para seguirmos à risca a fim de nos tornarmos modelos de espírita a serem seguidos? E quem disse que ser um bom espírita implica em ser um modelo a ser seguido? Pelo que sei, modelo não é o presidente do centro, o médium famoso ou a palestrante badalada. Modelo, só o Cristo. Para mim, ele está de ótimo tamanho.
Que bom que João consegue ser muito dedicado ao movimento espírita! Que bom também que o casamento dele deu certo e que ele é bem sucedido em se desviar de hábitos que podem resultar em vícios! Deus o conserve assim! Ao mesmo tempo, ele não tem o direito de ficar se comparando com os companheiros de lida espírita. Ele não é impoluto. Ele não está acima de ninguém. Ele só é chato, sectário e arrogante com esse comportamento.
Se o verdadeiro espírita é aquele que se esforça para se melhorar, é bom deixar claro: todos nós estamos neste barco do esforço pessoal. E todos, incluindo João, estão sujeitos a altos e baixos.
Além disso, como estabelecer um parâmetro de comparação? Em que somos mais ou menos espíritas que esse ou aquele trabalhador do centro do qual fazemos parte? Não sejamos descaridosos. Cada um é espírita do jeito que pode e consegue. E nisso está o grande barato da doutrina espírita. Ela dá as coordenadas para que cada um trilhe o próprio caminho da forma que melhor lhe convier, desde que isso implique burilar a si mesmo, respeitar o próximo e contribuir para um mundo socialmente justo e equânime.
No entanto, João, o espiritão, ainda é comum de encontrar. Já deparei com vários. Desde o sujeito que ficou falando meses a fio do grupo, que foi a um congresso espírita na Europa e aproveitou a viagem pelo Velho Continente para degustar alguns vinhos, à dama que ficou escandalizada porque um dos jovens da mocidade – aluno de belas artes – havia conseguido um estágio como assistente de um conhecido carnavalesco do Rio de Janeiro. Isso sem falar dos que acham o fim da picada haver homossexuais fazendo palestra, evangelizando mocidade ou atuando em reuniões mediúnicas. É bom ter cuidado com o julgamento. No momento em que julgamos, abrimos um perigoso precedente para também sermos julgados, conforme alerta Jesus.
Certa vez, li algo muito interessante sobre o Super-homem, famoso super-herói norte-americano. Conta-se que, tão logo os gibis do Homem de Aço foram lançados, em meados do século 20, o sucesso foi imediato. Tempos depois, as vendas inexplicavelmente despencaram. A editora, então, encomendou uma pesquisa e descobriu o seguinte: os leitores estavam cansando do personagem. Motivo: perfeito demais, invencível demais; estava ficando sem graça. Foi então que surgiu a ideia de criar a kriptonita. Trata-se de fragmentos de rocha do planeta natal do herói – Kripton. A kriptonita tem o poder de tirar as forças do Super-homem, deixando-o frágil como qualquer um de nós.
Moral da história: não banque o perfeito, o espiritão. Muito menos o exemplo a ser seguido. Senão, mais dia, menos dia, a tua kriptonita aparece e você irá ao chão como ser humano imperfeito que é.
Sei de uma história muito boa, envolvendo um espiritão. No próximo artigo, eu conto. Até lá!
O livro dos espíritos. 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF. MORRIS, Matt; MORRIS, Tom. Super-heróis e a filosofia – Verdade, justiça e o caminho socrático. Ed. Madras. 1ª Ed., 2006, São Paulo, SP.