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08 setembro 2021

O necessário, o supérfluo e o desperdício - Marcelo Teixeira

 
O NECESSÁRIO, O SUPÉRFLUO E O DESPERDÍCIO

Na edição 2019 do programa de competição culinária Masterchef Brasil, a chef Paola Carosella, uma das juradas, ao passar pela bancada de um participante, observou que ele havia desperdiçado grande quantidade de alimento para produzir o prato solicitado. Havia, portanto, muita carne, legumes etc. que o competidor simplesmente jogara fora para compor um prato com uma quantidade bem menor dos ingredientes. Aborrecida, Paola passou uma descompostura no rapaz. Segundo ela, era um acinte ele ter desperdiçado tanta comida fresca e de boa qualidade enquanto muitos passam necessidade. Mesmo porque, para elaborar um prato de restaurante, um chef que se preza jamais inutilizaria o tanto de comida que ele descartou. Paola, então, com a anuência dos outros dois chefs jurados, disse que, da próxima vez que ele agisse daquela forma, seria sumariamente desclassificado. Afinal, o alimento merece respeito!

Paola Carosella sabe do que está falando. Ela é engajada em várias atividades que visam ao aproveitamento de alimentos, incentivo aos pequenos produtores, implantação de cozinhas comunitárias, entre outras iniciativas. E é proprietária de conceituados restaurantes, ainda por cima.

A cultura do desperdício de comida é corrente no Brasil. Talvez pelo fato de vivermos num país rico em produção de alimentos, dá-se a impressão de que tudo é ilimitado e se pode esbanjar comida à vontade. É a cultura da fartura. Só que, quando jogamos comida fora, vão para o lixo parte da água, do adubo, da ração e dos demais itens utilizados para que o produto chegasse à nossa mesa. Descartamos também parte do combustível utilizado para transportá-lo e, é claro, nosso tão suado dinheiro.

Em 2018, o site de notícias G1 publicou uma reportagem com dados divulgados em um seminário internacional realizado em Brasília (DF). Segundo tais estatísticas, cada brasileiro desperdiça, por ano, 40kg de comida. Liderando o ranking, aparecem o arroz e o feijão, com 38% do volume que vai para o lixo. A carne vermelha aparece com 22%, seguida pelo frango: 15%. Já as frutas e hortaliças aparecem na lista com 4% de desperdício cada. Para chegar a tais números, foram ouvidas 1,7 mil famílias de todas as regiões do país e de todas as classes sociais.

Por que desperdiçamos tanto alimento? Entre os motivos apontados pelo estudo, estão a já citada cultura da fartura, a busca pelo sabor e o não aproveitamento das sobras das refeições (a chamada comida dormida). Por que dormida? Porque, como já vi acontecer em muitos lares, o arroz que sobrou do dia anterior é jogado fora para dar lugar ao arroz fresquinho, feito na hora, que é mais gostoso, o que também tem a ver com a busca pelo sabor. O mesmo acontece com o café que sobrou na garrafa térmica, a salada que ficou meio murcha dentro da geladeira, as sobras de carne que poderiam virar um risoto ou uns croquetes, mas são descartadas… Somam-se a isso o resto de leite que é esquecido dentro da geladeira, o biscoito que perde a validade sem sequer ter sido aberto e por aí vai. Isso sem nas falar partes que jogamos fora porque acreditamos que para nada servem: talos de verduras, cascas e caroços de frutas, que podem e devem ser aproveitados! Na internet, inclusive, há várias receitas de geleias feitas com cascas de abacaxi, tangerina e afins; bolos à base de cascas de banana; salgadinhos de sementes de abóbora ou melão; bolinhos de talos de agrião; entre outros acepipes que podem servir de refeição para gente que passa fome – grupo, aliás, bem numeroso no Brasil.

Segundo analistas, se o brasileiro aproveitasse a comida que sobrou, o bolso sentiria a diferença – e para mais. O nível de consumo de alimentos seria menor, o que tenderia a equalizar com a demanda, ou seja, não iríamos tantas vezes às compras, e os preços tenderiam a baixar. Isso quer dizer que quanto mais jogamos comida fora, mais a compramos e maior é a tendência de os preços se manterem em alta.

Há, no entanto, a faceta economicamente cruel do desperdício de comida. Reportagem veiculada pelo site G1 em abril de 2018 mostrou uma prática recorrente – e lamentável – de quem produz alimentos em larga escala: jogar fora toneladas de frutas, legumes, cereais e congêneres. Conforme a matéria, produtores rurais do município de São Gotardo (MG), se desfizeram, em 20 dias, de mais de 400 toneladas de batata. Motivo: o preço caíra e desmotivara a produção. Não estava valendo a pena produzir batata para vendê-la a preços reduzidos. Por isso, o tubérculo, que poderia estar na mesa do consumidor sob a forma de diversos pratos, estava ao léu, às margens da rodovia BR 354. A explicação do então presidente da Associação dos Moradores da Agrovila fala por si: “Produtor fica sem graça e alguns plantaram 100, 150 hectares. O mercado está ruim, a semente, adubo e mão de obra são caras”.

Não foi a primeira vez e nem será a última que os veículos de comunicação mostram produtores descartando alimentos em beiras de estrada. Os excedentes de safra e a súbita queda de preços de dado produto costumam resultar em ações desse tipo. Conciliar oferta, demanda e necessidade é uma conta que precisa ser fechada tendo como cálculo os fundamentos do amor ao próximo. Haja sentimento cristão para tanto!

Saindo do desperdício e entrando no terreno do necessário e do supérfluo – assunto, aliás, muito bem analisado por Allan Kardec em “O Livro dos Espíritos” – pergunto: Há necessidade de consumirmos, todos os dias, refrigerantes, pizzas, salgadinhos, batatas fritas, cachorros-quentes, empadões, tortas, brigadeiros, sorvetes e outras tantas gulodices que adoramos? A resposta mais sensata seria não. No entanto, é comum preferirmos tais pratos calóricos e gordurosos. Os motivos podem ser vários. Começam pela falta de hábito em consumir verduras, frutas e legumes; passam pela correria do dia a dia, que nos faz optar por comida industrializada; e caem no prato das crianças e adolescentes, vítimas potenciais de uma comida que, propositadamente, é fabricada com sabor, crocância e consistência na medida para que nossos filhos, sobrinhos e netos rejeitem o espinafre, a cenoura, o abacate etc. e fiquem com o paladar viciado em comida processada. Pode parecer assustador, mas é real. Trata-se de um assunto levantado em dezembro de 2013 pelo pediatra Fábio Becker, do Rio de Janeiro (RJ), em entrevista concedida ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura.

Quando eu almoço fora de casa, principalmente em restaurantes de comida por quilo, vejo com frequência crianças e jovens enchendo o prato de arroz branco, linguiça, bife, lasanha, batata frita e deixando para trás a abóbora, o brócolis, a couve-flor etc. Já presenciei, aliás, cenas deprimentes, como a garotinha muito bem vestida que encheu o prato de arroz e coração de galinha e o filho de um amigo próximo, que só queria saber de “nuggets” de frango no almoço e jantar. A consequência pode ser essa turminha em consultórios médicos para tratar de males como hipertensão e colesterol alto, apesar da tenra idade.

Em “O Livro dos Espíritos”, na parte destinada a debater sobre o necessário e o supérfluo, a questão 716 indaga se a natureza, ante da organização física que o ser humano possui, não traçou limites para as nossas necessidades. A resposta deixa claro que sim, há limites. Mas como muitos homens e mulheres são insaciáveis, extrapolam ao criarem necessidades que não são reais e, muitas vezes, descambarem para o vício. Entre eles, o vício de comprar em demasia, abarrotando armários com roupas e acessórios que nem sempre serão usados e também enchendo geladeiras e despensas com comida além do que podemos consumir, descartando o café requentado e o arroz preparado de véspera ou jogando fora a laranja que mofou antes de ser transformada em suco simplesmente porque nos esquecemos da existência dela no fundo da fruteira.

Isso tudo tem a ver com o que é afirmado também em “O Livro dos Espíritos”, desta vez na questão 799, na qual Kardec pergunta de que forma o espiritismo pode contribuir para o progresso. Resposta: “Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade.”

Geralmente, achamos que ser materialista é não acreditar em Deus, viver totalmente entregue aos prazeres mundanos e achar que, depois da morte, nada existe. O conceito é mais profundo. Tratar a matéria de forma atabalhoada, julgando que os recursos do planeta são infinitos a ponto de desperdiçarmos tanta comida e não sermos ainda capazes de instituirmos uma sociedade justa em que não haja produtores jogando safras fora para forçar alta nos preços ou porque não está sendo viável plantar feijão, batata ou similar evidencia que precisamos aprender a lidar melhor com a matéria. Assim procedendo, seremos capazes de estabelecer uma sociedade mais justa, com mesa farta e bem planejada para todos.



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