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29 janeiro 2012

Obsessão Desconhecida - Humberto de Campos


OBSESSÃO DESCONHECIDA

Os pais de Isolina Faria aproximaram-se do grupo espiritista, ansiosos de curar a filha.

Desde muito, vivia a jovem sob o império de singulares manifestações. Olhos cerrados a denunciar profunda insensibilidade na expressão fisionômica, gestos rudes, Isolina contorcia-se estranhamente e dava guarida a uma entidade ignorante e sofredora, que a tornava possessa. O Espírito perturbado, que parecia ter-se-lhe agarrado, prorrompia então em blasfêmias, lágrimas, soluços. Lastimava-se, praguejava, acusando pessoas e envenenando circunstâncias, qual louco que força alguma conseguia deter. Esgotados os recursos comuns, a família deliberou apelar para o Espiritismo, antes de qualquer providência para interná-la no manicômio. Vizinhos e amigos não poupavam definições. Aquilo deveria ser obsessão cruel. Tanta gente não se havia curado, em trabalhos da consoladora doutrina dos Espíritos? Por que não tentar as melhoras de Isolina mediante esses recursos? Quando o chefe da casa se inclinou à decisão, o generoso Nolasco Borges, velho c onhecido de infância, prontificou-se aos serviços iniciais.

– Sossegue, meu amigo – esclareceu ao companheiro inquieto –, em nossas reuniões a doente encontrará as melhoras precisas. Hoje mesmo começaremos os trabalhos de doutrinação da infeliz e, a breve tempo, Isolina será restituída à saúde e à alegria a que sua mocidade tem direito.

De fato, na noite imediata, pequena caravana, Nolasco à frente, penetrava o modesto salão dos Pachecos, onde se efetuavam sessões íntimas.

O velho Araújo, doutrinador carinhoso e esclarecido, organizou a reduzida assembléia, cônscio da responsabilidade que lhe cabia.

Logo após a oração de abertura, a moça doente caía em contorções estranhas. Palidíssima, boca espumejante, gritava dolorosamente, reproduzindo emoções da entidade desconhecida. – Oh! meu irmão – exortava Araújo bondosamente –, por que violentas desta maneira uma pobre criança, necessitada de equilíbrio para atender aos próprios deveres? Por quem és, meu amigo, esquece o mal e ouve a lição de Jesus. Estamos aqui votados à prática do bem.

Somos imperfeitos, inferiores. Tateamos nas sombras da ignorância e não te desejamos impor ensinamentos. Sabemos que a obra de redenção final pertence ao Mestre Divino; entretanto, creio que podemos advertir teu coração, pois aqueles que caíram como nós outros, neste mundo, estão habilitados a comentar os próprios males e evitar que outros incidam nos mesmos erros. Por vezes, poderá parecer que somos excessivamente ousados, tentando estabelecer normas aos que vivem em esfera indevassável aos nossos olhos; contudo, este esforço obedece ao amor fraternal que Jesus abençoa. Volta, amigo! Abandona a tarefa ingrata de subjugarão desta jovem, que deve enriquecer-se com as experiências da vida terrestre. Solicitamos tua boa-vontade, por amor de Deus!...

A voz do amoroso doutrinador silenciara-se ligeiramente. Araújo, emotivo e bondoso, enxugava os olhos úmidos, enquanto a reduzida assistência permanecia sob enorme impressão. O Espírito ignorante demonstrava aflição. A palavra do doutrinador tocara-o profundamente, mas, como se estivesse preso a inflexíveis algemas, soluçava mais fortemente e bradava:

– Ai de mim! Não posso!... Não posso!...

– Não podes? – tornava Araújo, dedicado – quando temos vontade, Jesus nos confere o poder. Anima-te. Por que perseverar no sofrimento do mal, quando o bem nos oferta alegrias eternas? Levantemo-nos para Deus, edificando-nos na própria fraqueza. Se guardas reminiscências amargas, esconde-as de ti, desfaze-te do vinagre acumulado no coração. Se foste ofendido, perdoa! Se as feridas te reclamam vingança, aplica-lhes o bálsamo do amor que sabe viver da esperança em Cristo.

O corpo frágil da jovem contorcia-se violentamente, ao passo que o sofredor murmurava em pranto:

– Sou infame, desventurado! Não posso... não posso...

As reuniões de esclarecimento prosseguiam sem alteração. Duas vezes por semana, agrupavam-se os companheiros, repetindo-se as mesmas cenas.

Araújo não podia ser mais paciente. Ensinava bondosamente, como quem sabe corrigir amando. A entidade perturbadora, porém, não correspondia ao esforço senão com gritos, protestos e soluços de causar dó.

Decorridos alguns meses, a pequena assembléia começou a impacientar-se. Tão logo se manifestava o infeliz, formavam-se pensamentos contrários à simpatia fraternal. Na opinião da maioria, aquele Espírito requisitava punições e conselhos ásperos. Isolina era tida como vitima infortunada nas mãos de audacioso algoz da esfera invisível. Admirava-se a paciência do dedicado orientador das sessões, que punha em jogo todos os recursos afetivos.

Nolasco, porém, a certa altura da tarefa, não se conteve, e, depois de tumultuosa reunião, interpelou Araújo amigavelmente:

– Não julga você necessário e conveniente punir esse perseguidor implacável? Creio tratar-se de perverso bandido das trevas.

O velho doutrinador percebeu as dúvidas que pairavam no ambiente geral e acrescentou:

– Há muito, venho lidando por compreender que cada coisa permanece no lugar que lhe é próprio. Em nossa apreciarão fragmentária, o perturbador de Isolina é um Espírito diabólico; entretanto, é imprescindível não esquecer que as nossas definições são incompletas. Há oito meses trabalhamos para lhe levantar as energias, sem resultados satisfatórios. À primeira vista, estamos fracassados no serviço de socorro espiritual; mas, como firmar nosso ponto de vista neste sentido, se desconhecemos as causas profundas?

Nolasco e os demais companheiros respeitaram-lhe o parecer, mantendo-se em silêncio expressivo.

– Esgotadas nossas possibilidades de compreensão – prosseguiu o amorável velhinho –, não será justo apelar para o Plano Superior? Nós que desejamos socorrer, precisamos igualmente ser socorridos. Peçamos a Melânio, amoroso guia de nossos trabalhos, que se pronuncie. É possível que a sua bondade fraterna nos conceda a chave do enigma.

Ninguém discordou da criteriosa sugestão.

Na noite seguinte, a reunião em casa dos Pachecos foi mais íntima. Acorreu Melânio gentilmente e, depois de recomendar a cessação temporária dos trabalhos de doutrinação, prometeu chamar o obsessor a esclarecimentos. Examinaria o caso com atenção, a fim de tentar providências justas. Em seguida, voltaria a notificar os irmãos relativamente às tarefas que se impunham.

Dias decorreram antes que o emissário regressasse com as instruções espirituais. Após três semanas de expectativa, em sessão comum do agrupamento, eis que Melânio se manifesta, e, depois das carinhosas saudações usuais, discorre, bondosamente, com surpresa geral:

– Quanto ao caso da irmã Isolina Faria, devo esclarecer preliminarmente que os aprendizes da Terra conhecem a obsessão somente em sentido unilateral. O infeliz perturbador, que atende pelo nome de Juliano Portela, de sua última existência terrena, não foi encontrado facilmente. Precisei reunir-me a companheiros da Espiritualidade, a fim de chamá-lo a explicações diretas. Tendes, nas vossas sessões, a presença do enfermo encarnado, ao passo que, nas nossas, examinamos os doentes invisíveis a vós outros. Entreguei-me à solução do assunto, com a maior boa-vontade; entretanto, o perturbador de Isolina queixa-se amargamente do assedio que experimenta, na esfera em que se encontra. Declara-se perseguido, atormentado por ela. Não tem paz, nem rumo certo. A mente da jovem, com o seu grande poder magnético, requisita-o em toda parte. O pobrezinho não consegue progredir, nem furtar-se ao ambiente de inquietação a que ela o sujeita. Se ao voss o olhar permanece a nossa amiga assediada, à nossa vista surge o infortunado Juliano em terrível desespero do coração, como quem se sente prisioneiro de garras inflexíveis.

Diante do que observamos, o verdadeiro obsessor é a médium obstinada. A vigorosa potencialidade magnética de Isolina é a gaiola, e Juliano o pássaro cativo. É preciso restabelecer o equilíbrio da verdadeira situação. Tanto existem perseguidores na esfera invisível, quanto nos círculos de vossa atividade comum. Aclarai o próprio espírito, amigos meus. Expulsemos a sombra de nossa região interior. Desencarnados e encarnados não significamos duas grandes raças diferentes e irreconciliáveis. Todos somos semelhantes na vida eterna, com as mesmas possibilidades, deveres e obrigações. Nos dramas pungentes dos obsidiados, lembrai que, se na justiça humana não ocorrem processos absolutamente iguais nos detalhes, no resgate divino cada situação apresenta característicos diferentes. Guardai o brilho do cristal e refletireis a luz na sua pureza ; retende o mel do bem e as abelhas da sabedoria cercar-vos-ão as pétalas interiores!...

Melânio calara-se enquanto a assembléia chorava comovida. O bondoso Araújo agradeceu com lágrimas de alegria:

– Obrigado, meu irmão!

O mensageiro orou ainda, emocionadamente, e declarou ao despedir-se:

– Em vista do que observamos, queridos companheiros não bastará espantar as moscas do mal. É indispensável, antes de tudo, curar as feridas da imperfeição.

Pelo Espírito Humberto de Campos
Do livro: Reportagens e Além Túmulo
Médium: Francisco Cândido Xavier

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