GASPARETTO: O MÉDIUM DOS PINTORES INVISÍVEIS
Conheci-o no começo da década de 1970. Antes, havia conhecido seus pais, Zíbia e Aldo, que atuavam como expositores nos cursos da Federação Espírita do Estado de São Paulo, onde me matriculei com o desejo de aprofundar meus conhecimentos espíritas. Zíbia, na ocasião, já despontava com sua mediunidade psicográfica, tendo publicado dois livros: O amor venceu e O morro das ilusões. Já como integrante da equipe do jornal Correio Fraterno do ABC, recebi de Zíbia os direitos de publicação do livro Entre o amor e a guerra, que teve ali duas edições. Zíbia cancelou os direitos por conta da contrariedade que teve com uma crítica publicada no Correio, feita por especialista em literatura, apontando deficiências técnicas na obra. Nem a resenha ao lado, exortando as qualidades do conteúdo do livro foi suficiente para demovê-la da decisão. A partir de então, Zíbia passou a publicar seus livros em sua própria editora.
Estive mais próximo de Luiz Antônio Gasparetto depois que Elsie Dubugras entregou-me a responsabilidade de planejar e publicar o livro Renoir, é você?, obra bilingue cujo título resultou de um programa de tv veiculado na Europa, programa este que teve ampla repercussão e foi reprisado inúmeras vezes, no qual Gasparetto produz telas mediúnicas com a assinatura do conhecido pintor francês. Durante o período de preparação do livro, acompanhei Gasparetto em diversas apresentações na cidade de São Paulo, testemunhando de perto o extraordinário fenômeno, bem como reunindo-me com ele e Elsie por inúmeras ocasiões. O livro Renoir, é você? foi o primeiro publicado sobre a produção mediúnica de Gasparetto, mas é muito pouco conhecido hoje e sequer consta da bibliografia do médium. É assinado por Elsie, Gasparetto e Espíritos que possuem obras reproduzidas no livro.
A saga de Luiz Antônio teve em sua primeira fase a presença forte de Elsie Dubugras. Foi ela que o introduziu na Europa, abrindo as portas para que se tornasse conhecido mundialmente, como um fenômeno que chamava a atenção das pessoas nos vários países em que Gasparetto se apresentou, aumentando, de forma considerável, o interesse por ele no próprio Brasil. Elsie era a mão de ferro que imprimia ao médium uma rígida disciplina capaz de garantir as condições ideais para a produção do fenômeno e, sem dúvida nenhuma, nem sempre encontrando no médium a aceitação plena. Mas era a condição imposta por Elsie para o seu apoio.
Quando, enfim, os caminhos de Gasparetto e Elsie se separaram, o médium deu início a uma atuação pessoal e independente, de forma a imprimir sua própria marca junto à produção dos espíritos. Inteligente, tinha o seu olhar pessoal sobre as pessoas e o mundo. Foi um processo de libertação de um período em que se sentia oprimido por lhe ser negada a possibilidade de comportar-se e exprimir-se segundo o seu modo de ver, que desde cedo se opunha à tradição moral das práticas espíritas.
Daí em diante Gasparetto vai distanciar-se cada vez mais do movimento espírita e vai levar consigo toda a família. A mãe, que fundara e dirigia Associação Cristã de Cultura Espírita Os Caminheiros, localizada dentro de uma favela na cidade de São Paulo, cujo trabalho social teve grande repercussão pela amplitude, cedeu à influência do filho permitindo-lhe introduzir modificações grandes no funcionamento da obra, a ponto de descaracterizá-la completamente em relação ao espiritismo. Havia em Gasparetto a ideia infeliz de que a prática do bem, a solidariedade, que se resume em caridade verdadeira, não promove o ser humano, só atrapalha, porque torna as pessoas preguiçosas e sem mérito. Dizia que era preciso deixar que os necessitados se esforçassem, por conta própria, que pagassem pelos cursos, palestras e livros, para darem valor ao que recebiam. Somando-se isso às ideias pessoais de Gasparetto que já repercutiam na sociedade, o fato rendeu-lhe críticas acerbas nos meios espíritas, levando-o à decisão, bem como de sua mãe, de tornar público o seu afastamento do espiritismo. Era como se o rótulo de espírita trouxesse a Gasparetto e sua família um certo sentimento de vergonha constrangedora.
Gasparetto nutria forte discordância em relação à maneira como os espíritas, com base nos ensinamentos doutrinários, defendiam a prática mediúnica desinteressada monetariamente como base no ensino do “dai de graça o que de graça recebestes”, por entender que o médium deveria ter a liberdade de decidir em casos dessa ordem, não lhe sendo nada imoral receber pelas obras que produzia e aplicar os recursos recebidos a seu favor e como quisesse. De preferência vivendo uma vida abastada, porque isso resulta de seu mérito e do direito que tem de saborear o seu sucesso. Esse pensamento, que se estendeu à edição e venda dos livros de Zíbia, levou-o a fazer severas críticas a Chico Xavier, duramente desrespeitosas, não aceitando que este vivesse uma vida quase miserável enquanto seus livros psicografados vendiam aos milhares. Entendia que Chico deveria usufruir dos recursos financeiros que os livros produziam e viver ricamente. Foi o que Gasparetto fez com os recursos financeiros advindos da venda dos quadros que produzia mediunicamente, embora já tivesse uma vida pessoal e familiar suficientemente farta, filho que era da classe média alta.
Na ocasião em que essas opiniões de Gasparetto vieram a público em entrevista concedida a uma revista, externamos também nossa opinião contrária não simplesmente para defender Chico Xavier, mas especialmente em razão dos ensinos espíritas, expostos com muita clareza por Allan Kardec no Livro dos médiuns. A questão ética – e não simplesmente a moral e os costumes – é fundamental para o bom exercício da mediunidade. E a caridade, ou seja, a capacidade de ser solidário com a dor e as necessidades do outro é o caminho de formação do homem de bem. É dessa maneira que Kardec vê, ao definir o lema: “Fora da caridade não há salvação”.
O extraordinário médium tinha divergências mais amplas com o espiritismo, pois considerava-o produto de uma época sem o mesmo valor para os dias atuais, ou seja, via-o como doutrina ultrapassada, entendendo que os tempos atuais haviam introduzido uma outra maneira de viver, que a moral para ele rígida do espiritismo não permitia. Mas, assim como muitos que atribuíram ao espiritismo a pecha de doutrina ultrapassada, Gasparetto não logrou oferecer nenhum novo olhar filosófico que pudesse ser acrescentado, por mais que escrevesse e tivesse seus livros lidos por imensa quantidade de pessoas. Esses livros, considerados de autoajuda, compuseram o período mais superficial de sua vida, como a própria crítica especializada reconhece. Aqui e ali, os livros tentam interpretar este ou aquele princípio básico do espiritismo, sem, no entanto, conseguir superar a superficialidade de seu pensamento e menos ainda se aproximar da profundidade da obra de Kardec.
A verdade é que Gasparetto construiu sua trajetória de sucesso sem dispensar um só e único princípio básico do espiritismo; ao contrário, prosseguiu utilizando-os à sua maneira, segundo o seu jeito de interpretar pessoal e nada singular, mas tendo-os por válidos e até mesmo imprescindíveis. A imortalidade do espírito, suas relações com o mundo e os seres nele encarnados, as vidas sucessivas, a vida no mundo espiritual, etc., estavam no cerne de sua cultura pessoal e familiar. Sua contrariedade era firmada principalmente no que chamava de moral católica presente, segundo ele, na doutrina espírita, moral essa que lhe dificultava a liberdade de pensamento e comportamento, dentro daquilo que pretendia para sua vida em termos de expressão da sexualidade e da maneira de praticar a mediunidade. Dir-se-ia que o médium inigualável trocou a insegura segurança da prática mediúnica por uma carreira profissional em que ele, e não outrem, era o pensador e a fonte.
Desligar-se do espiritismo não era apenas uma forma de responder aos espíritas que criticavam aberta ou veladamente o comportamento, a moral e as opiniões de Gasparetto, especialmente quando ganhou projeção no rádio e na tv; era mais do que isso: a maneira de conquistar independência e autonomia para dizer ao mundo que para além do médium existia um homem capaz de pensar por si mesmo com propriedade e eficácia, inclusive contrariando o pensamento espírita dominante. A produção mediúnica, embora lhe trouxesse sucesso mundial, não era vista por ele como obra genuinamente sua, senão dos espíritos. Os louros que lhe atribuíam eram mais devidos à sua eficaz “passividade”, que aparentemente não resulta da inteligência, mas de uma certa subserviência à inteligência alheia. Para quem se sente capaz de pensar e criar com igual ou até melhor conteúdo, essa situação se torna, sem dúvida, um peso. Como aceitar que uma multidão de pessoas fique boquiaberta ante o fenômeno mediúnico, enquanto que ao lado existem excelentes ensinamentos que podem tornar mais livres e mais autônomos esses indivíduos ingênuos?
Dessa maneira, Gasparetto inclui-se entre os médiuns excepcionais, de capacidade reconhecida, mas que lutam diuturnamente para firmar a ideia de que não são meros objetos dos espíritos, mas espíritos iguais ou até melhores que aqueles que por eles se manifestam. E querem demonstrar isso, afinal, pensam e precisam dizer o que e como pensam, senão para diferenciá-los dos espíritos que os utilizam, também para deixar claro a personalidade carente, merecedora de distinção e da mesma respeitabilidade. Não querem parecer-se simplesmente insatisfeitos com os espíritos que o utilizam, mas acima de tudo estão contra os que não reconhecem sua inteligência e não são capazes, assim, de o colocarem no mesmo nível dos espíritos.
Quando do evento da separação da família Gasparetto do espiritismo, as lideranças doutrinárias preconceituosas respiraram, aliviadas, mas deveriam ter aproveitado a oportunidade para repensar os rumos dados à doutrina. Gasparetto lutava contra a falsidade dos julgamentos, a moral das aparências, o misticismo igrejeiro, não importa se desejoso de divulgar seu modo pessoal de interpretar tudo isso. Essa moral dos costumes que enoja e envergonha, porque se prende a julgamentos do comportamento alheio a partir de uma compreensão superficial da doutrina e de uma postura condenável de sentinelas da vida alheia. Não houve nenhum movimento conhecido nos meios espíritas para lidar com a situação, apesar de Gasparetto e sua mãe já terem dado mostras suficientes de sua dedicação à causa. Gasparetto foi julgado e condenado no silêncio dos corações frágeis e comprometidos com essa falsa moral. Ninguém moveu uma palha, não se escreveu uma única linha sequer de reconhecimento ao médium e da grande contribuição que dera à divulgação doutrinária. O movimento espírita foi silêncio tétrico, e nada mais. Como se dissesse, covardemente: que se vá o filho infiel e impuro!
Gasparetto parte do corpo físico reconhecendo erros em decisões tomadas, sem esclarecer quais. Viu uma estranha nuvem escura nas manchas de seus pulmões e disse para si mesmo que eram decorrentes do abrigo que dera a pensamentos ruins. Disse também não temer a morte, mantendo o ensinamento espírita da vida material breve sucedida pela imortalidade dinâmica. Mais viveria se pudesse e muitas outras coisas faria se lhe fossem dadas as condições ideais que ele mesmo negara ao seu corpo. O tempo escoou pelas frestas do destino.
Eu que o vi pintando com as mãos e os pés ao mesmo tempo, não consigo tirar da retina aquele momento fabuloso das telas saindo de seus poros manchados de cores e vida, como numa súplica do invisível para que os seres humanos percebessem que há muito mais coisas além dos sentidos físicos. Se aqueles quadros valiam algum dinheiro, a mensagem das inteligências por detrás delas continham um tesouro impagável: o convite à liberdade, à verdadeira liberdade que é pensar, decidir e agir. Se feriam o olhar extasiado do homem imaturo, eram mais do que isso, eram a senha para penetrar no mundo invisível e, ultrapassadas as sombras do portal, descobrir a grandeza da vida. Nem o ouro mais puro reluz tanto.
Wilson Garcia
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