Total de visualizações de página

20 março 2022

Laços de Amor além do Tempo - Luis Fernando Lopes

 
LAÇOS DE AMOR ALÉM DO TEMPO

A médium Yvonne do Amaral Pereira é uma das personalidades mais importantes da história do Espiritismo no Brasil. Portadora de uma mediunidade exuberante, desde cedo teve que aprender a lidar com as presenças espirituais em sua vida. Enfrentou a doença e os estados psíquicos perturbadores provocados pelas potencialidades anímicas e mediúnicas que lhe caracterizavam, atravessando toda a infância e a juventude em meio a interferências de desencarnados e recordações de sua encarnação anterior, que lhe provocavam tormentos, às vezes, insuportáveis.

Quando eu a conheci, dialogamos muito e nos identificamos bastante, vindo a saber que, quando jovem, ela experimentou muitas sensações psíquicas e dificuldades que eu também havia vivenciado.

Ao entregar-se à Doutrina Espírita, D. Yvonne dedicou-se como poucos à causa do Bem, exercendo a mediunidade com a nobreza e a abnegação que são próprias aos Espíritos disciplinados, decididos a levar adiante os compromissos assumidos antes do retorno aos caminhos terrestres.

O seu livro Memórias de um Suicida é uma obra de beleza ímpar, devassando as dimensões espirituais e revelando ao mundo o sofrimento atroz que se instala na vida de quem opta pela fuga dolorosa mediante o suicídio. Sendo ela própria uma ex-suicida, a recepção mediúnica do livro constituiu-lhe, de certa forma, um sacrifício, porque ela foi obrigada a rever cenas de situações que havia vivenciado na erraticidade. No entanto, a obra tornou-se uma advertência de valor inestimável para os viajantes da vida física, muitos dos quais certamente devem a esse livro o fato de terem-se afastado das consequências devastadoras do autoextermínio.

Certo dia, quando fui visitá-la, por ocasião de uma de minhas viagens, encontrei-a com o braço fraturado, suspenso por uma tipoia para poupá-la de fazer movimentos bruscos. Ao perguntar sobre o ocorrido, a médium elucidou-me gentilmente:

— Divaldo, você deve saber que a publicação do livro Memórias de um Suicida não agradou aos Espíritos vampirizadores que no mundo espiritual exploram seres suicidas em regiões inferiores. Pois bem. Um dia estava saindo de casa e, ao abrir a porta, senti duas mãos vigorosas empurrando-me pelas costas. Sem conseguir segurar-me eu caí de forma desajeitada e quebrei o braço com o qual psicografo. Esparramada no chão, olhei para cima, tentando identificar o autor do empurrão. Então eu vi um Espírito com fisionomia retorcida e com ar de ódio que me disse: “Isso é para você aprender a não receber esse tipo de livro, que prejudica os nossos planos de dominação dos seres miseráveis que nós exploramos!”. Então, eu pude entender o porquê da queda e do braço fraturado.

D. Yvonne não se deixou, porém, abater pelo acontecimento e prosseguiu sem vacilar no trabalho de amor que lhe cabia executar.

A médium dedicada, proveniente de um passado reencarnatório marcado pelo insucesso, nunca conseguiu adaptar-se a uma vida social mais ampliada, razão pela qual sempre trabalhou em sua própria casa, realizando costuras para fora a fim de obter o sustento material. Ela desejava casar-se e construir uma família, o que não estava no seu programa espiritual porque na existência anterior houvera se suicidado por causa de uma tragédia familiar desencadeada por ela mesma em Portugal, no século XIX. Na ocasião, a morte prematura da sua filha de quase sete anos e o falecimento do seu marido trouxeram-lhe uma dor insuportável, uma vez que ela havia cometido o adultério que destruiu o próprio lar e precipitou as duas desencarnações. Dominada pelo remorso, a jovem portuguesa atirou-se nas águas do Rio Tejo, morrendo afogada e experimentando todas as sensações angustiantes da imersão e da decomposição do cadáver. Ela trazia na memória espiritual as recordações desses episódios com lucidez impressionante, que incrementavam a sua dificuldade em permanecer com o psiquismo equilibrado para trabalhar na mediunidade. Sua infância e sua juventude foram assinaladas por sofrimentos indescritíveis, por causa da mente conturbada pelas lembranças amargas, que somente o Espiritismo conseguiu explicar para que obtivesse algum alívio já na fase adulta (115).

Dessa forma, Charles, um Espírito protetor que havia sido seu pai por mais de uma encarnação, inclusive naquela existência em solo português, advertiu-a para o fato de que a solidão deveria ser o seu caminho na Terra, provação necessária para que aprendesse que o remorso pelos danos provocados à sua família jamais poderia justificar o desespero a que viesse a entregar-se, culminando com o gesto insano de tirar a própria vida. Por isso, nesta encarnação no Brasil, a nobre trabalhadora do Bem precisava aprender o respeito à vida por meio da renúncia e da entrega total ao amor fraterno.

Certo dia, contrariando as orientações dos seus guias espirituais, D. Yvonne começou a estreitar laços afetivos com um rapaz. A aparente amizade foi-se dilatando até o ponto em que o jovem a convidou para um jantar. Após o restaurante, os dois assistiriam a um filme no cinema e completariam a noite agradável.

Muito empolgada, ela se vestiu com simplicidade, mas com elegância. Não poderia descuidarse naquele momento de aproximação, que poderia resultar em um compromisso futuro. Tinha a certeza de que ele seria uma ótima companhia para um momento de espairecimento sem maiores consequências. Desejava conversar, e via no moço um ar de educação que a deixou tranquila.

Naquele tempo os rapazes eram muito cuidadosos ao se aproximar de uma jovem para tentarem namorar. Não seria, portanto, em um primeiro encontro que avançariam o sinal do equilíbrio. Estava tranquila.

O rapaz também se preparou convenientemente, não descuidando da roupa e do perfume que causariam boa impressão.

Na hora marcada, ele foi buscá-la em casa e ambos se dirigiram ao local do jantar. Durante todo o tempo, ele correspondeu às expectativas de D. Yvonne, com uma postura exemplar de educação e sem utilizar qualquer expressão vulgar. Era um verdadeiro cavalheiro. Por sua vez, a médium procurou demonstrar que se tratava de uma pessoa lúcida, simples e destituída de maiores ambições, apresentando-se sempre de forma muito reservada aonde quer que fosse.

A certa altura, o jantar se encerrou e os dois tomaram o caminho do cinema para darem curso à segunda etapa daquele momento de lazer ingênuo e respeitoso.

Quando estavam na porta do cinema, o rapaz comprou os ingressos e se dirigiu para a entrada da sala de projeção, seguido pela enamorada. Nesse exato momento apareceu o Espírito Charles e perguntou-lhe:

— Aonde pensas que vais?

— Vou assistir a um filme, meu irmão. Nada demais — respondeu ela.

— Tu tens certeza de que não há nada com que te preocupares?

— Claro que sim. Ele é um rapaz educado e gentil. Não irá tomar nenhuma atitude para me desrespeitar.

— Infelizmente a tua ingenuidade é imensa... Depois de ter oferecido um jantar tu não achas que ele irá cobrar-te o pagamento?

D. Yvonne ficou surpresa com a informação do amigo espiritual. Enquanto dialogava psiquicamente com Charles, o rapaz estranhou o fato de que ela não o seguiu, atravessando a porta para entrar na sala de projeção.

— Mas ele me pareceu ser um bom rapaz...

— Pois bem. Agora tu já sabes que as aparências enganam e que deves estar mais atenta às circunstâncias da vida. E mesmo que ele fosse uma pessoa bem intencionada, há muito tempo tu já conheces o teu caminho nesta existência física. Estamos aqui, os Espíritos que se comprometeram contigo para o trabalho da mediunidade, para a tarefa de aprimoramento e de renúncia que assumiste. Portanto, quero dizer-te que terás de escolher. Se tu fores com ele, nós não iremos contigo. O nosso compromisso de trabalho estará finalizado e aqui mesmo iremos despedir-nos.

Nesse momento o jovem, percebendo que havia algo estranho acontecendo, insistiu para que ela entrasse no cinema:

— Yvonne, você não vai entrar? — perguntou ansioso.

A nobre senhora, refletindo sobre as palavras de Charles, tomou a sua decisão:

— Fulano, infelizmente eu não poderei acompanhá-lo! Lembrei-me agora mesmo de que tenho uma costura para entregar a uma cliente linda hoje. Até logo!

Ao dizer isso, a médium saiu apressada, sem olhar para trás, deixando o rapaz sem entender o que aconteceu. E os dois nunca mais voltaram a ver-se.

De fato, D. Yvonne sentia a falta de um companheiro que alegrasse os seus dias. Mas o casamento não estava no seu programa reencarnatório. Ela necessitava transitar pelo mundo mantendo uma atitude de reflexão acerca dos valores da vida conjugai e da família.

Depois disso, nossa querida D. Yvonne mergulhou ainda mais no trabalho mediúnico, psicografando romances, participando de reuniões de desobsessão, consolando as pessoas e atuando no receituário mediúnico homeopático conduzido pelo Espírito Bezerra de Menezes.

A partir de certa época, ela entrou em contato com o idioma esperanto, a língua neutra internacional proposta pelo polonês Lázaro Luiz Zamenhof. Com isso, a médium pôde fazer muitos amigos dentro e fora do Movimento Espírita, especialmente entre estudiosos da Cortina de Ferro, como eram chamados os que viviam nas repúblicas soviéticas, que se unem pelo ideal de uma comunicação sem barreiras linguísticas e permeada pelo sentimento de fraternidade.

Um dos esperantistas com os quais ela se correspondia despertou-lhe um afeto especial. Era um homem mais jovem do que ela e que denotava ser portador de boa cultura, ao lado de um expressivo espírito de generosidade. A amizade entre ambos foi aos poucos estreitando-se e o rapaz também confessou-lhe sentir por ela uma ternura especial.

Numa época em que não havia internet, a correspondência era feita por cartas, que se tornavam cada vez mais frequentes. Até que em uma ocasião o jovem polonês escreveu-lhe confessando que a amava. Não sabia dizer como, porque os dois não se conheciam pessoalmente, mas sabia que, ao dialogarem através das correspondências, D. Yvonne parecia-lhe muito familiar. O mesmo sentimento era compartilhado por ela, o que lhe causava sofrimento por reconhecer que não poderia alimentar qualquer ilusão de um relacionamento próximo ou remoto. Contudo, aquela sensação de conhecer esse rapaz perturbava-a.

Vamos abrir um parêntese explicativo.

Durante toda a sua infância e parte da juventude, D. Yvonne registrava a presença de um Espírito que nutria por ela um grande amor. Ela o chamava Roberto de Canalejas, nome que possuíra na sua última reencarnação, quando nasceu na França e foi morar em Portugal, casando-se com ela. Esse Espírito era exatamente o marido a quem havia traído, gerando a consciência de culpa e o desespero que culminaram no suicídio doloroso a que me referi (116).

Depois de um largo período de convivência com a médium, esse Espírito afastou-se para reencarnar, e a jovem Yvonne nunca mais recebeu suas visitas, que lhe faziam muito bem ao coração.

Essa observação que inseri tem o objetivo de elucidar que o jovem esperantista com o qual D. Yvonne se correspondia era o seu marido do pretérito, que retornava ao corpo físico em terras distantes, o que não lhe permitia uma aproximação mais pronunciada do antigo afeto a quem não deveria vincular-se na atual existência, a benefício de ambos. Acontece que o sentimento costuma trair-nos, precipitando-nos em situações não programadas que podem comprometer os nossos melhores esforços de sublimação e de resgate.

Em decorrência da extensa comunicação mantida pelo casal do passado reencarnatório, o rapaz decidiu viajar ao Brasil para conhecê-la, infringindo as normas do planejamento existencial traçado e tentando reencontrar o seu antigo amor. D. Yvonne foi advertida por Charles, informando-a de que não poderia encontrá-lo, visto tratar-se precisamente do antigo esposo em nova roupagem corporal. D. Yvonne tentou sem sucesso dissuadir o amigo estrangeiro de realizar tal viagem ao estado do Rio de Janeiro para visitada, apresentando mil alegações como empecilhos que deveriam desestimulá-lo. Nada obstante, o jovem esperantista veio ao Brasil, procurando D. Yvonne no endereço que constava nas cartas recebidas.

Ao chegar à porta da casa da médium, ele foi recepcionado delicadamente por um membro da família, que já estava instruído a não permitir o seu acesso ao interior da residência. D. Yvonne foi tomada de choque emocional ao vê-lo na porta de entrada. O seu coração vibrava ao sabor de uma balada de ternura que ecoava em sua memória desde tempos remotos. Ela se escondeu de uma forma que poderia olhá-lo sem que ele a percebesse. Por fim, quando o rapaz foi informado de que a médium havia iniciado uma longa viagem sem data certa para retornar, ele baixou a cabeça, profundamente entristecido, agradeceu a recepção e se retirou do local, deixando naquela residência todas as esperanças de conhecer pessoalmente o seu grande amor.

D. Yvonne ficou com a alma despedaçada, mas conformou-se com as provações afetivas que teria que arrostar para se redimir dos equívocos praticados em nome da invigilância e do desrespeito aos sagrados laços de família.

O tempo transcorreu célere e, certo dia, a médium recebeu notícias da desencarnação do amigo e afeto distante.

A vida de solteira, a sede de ternura e a dedicação à causa do Bem foram-lhe um bálsamo que lhe permitiram recuperar-se do passado de sombras compactas nos caminhos do coração, para que ingressasse definitivamente em uma nova fase de conquistas libertadoras.

D. Yvonne do Amaral Pereira desencarnou no ano de 1984, deixando um legado composto por obras psicografadas da mais alta qualidade, incluindo o extraordinário livro Memórias de um Suicida. Além disso, o seu amor às pessoas simples e aos Espíritos em sofrimento dão testemunho de que o compromisso espiritual assumido por ela foi honrado com todos os méritos possíveis, transformando-a em uma personalidade veneranda e atribuindo-lhe a condição de autêntica cristã, que conseguiu o mediunato.

Certo dia, quando eu fazia uma palestra sobre a mediunidade e mencionava a vida de D. Yvonne, referindo-me à sua história secular ao lado de Roberto de Canalejas, os dois se apresentaram à minha visão mediúnica, portadores de rara beleza Espiritual. Uma emoção peculiar invadiu-me o coração ao vê-los juntos, porque a cena era verdadeiramente comovedora. Estavam de mãos dadas, mais apaixonados do que nunca e muito felizes por se unirem novamente, revivendo em seus corações os laços de amor que prosseguem estudantes além do tempo (117)...


Livro: Sexo e Consciência - capítulo 9
Organizado por Luis Fernando Lopes a partir de palestras de Divaldo P. Franco


Nenhum comentário: