PODER DA VONTADE SOBRE AS PAIXÕES
A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz. 1
A questão da liberdade moral do homem sempre foi objeto de estudo por parte e filósofos de todos os tempos. “Segundo a ideia falsíssima de que lhe não é possível reformar sua própria natureza, o homem se julga dispensado de fazer esforços para se corrigir dos defeitos nos quais se compraz voluntariamente, ou que exigiriam muita perseverança. É assim, por exemplo, que o indivíduo propenso a encolerizar-se, quase sempre se desculpa com o seu temperamento. Em vez de se confessar culpado, lança a culpa sobre a sua organização, acusando a Deus, dessa forma, de suas próprias faltas. É ainda uma consequência do orgulho que se encontra de permeio a todas as suas imperfeições.2
“Segundo a doutrina vulgar, de si mesmo tiraria o homem todos os seus instintos que, então, proviriam, ou da sua organização física, pela qual nenhuma responsabilidade lhe toca, ou da sua própria natureza, caso em que lícito lhe seria procurar desculpar-se consigo mesmo, dizendo não lhe pertencer a culpa de ser feito como é. Muito mais moral se mostra, indiscutivelmente, a doutrina espírita. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude e, se lhe diz que, praticando o mal ele cede a uma sugestão estranha e má, em nada lhe diminui a responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, o que evidentemente lhe é muito mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza.
Assim, de acordo com a doutrina espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar ouvidos à voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal, como pode cerrá-los à voz material daquele que lhe fale ostensivamente. Pode-o pela ação da sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e reclamando, para tal fim, a assistência dos Espíritos bons. Foi o que Jesus nos ensinou por meio da sublime prece que é a Oração Dominical, quando manda que digamos: “Não nos deixes sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal.” 3
Somente pelo esforço da vontade podemos domar as paixões.
Vejamos, então, de maneira sintética, de onde vêm as paixões e em que diferem ou podem ser confundidas com os instintos:
“Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele e estas se confundem nos efeitos.
Há, contudo, entre esses dois princípios, diferenças que muito importa se considerem.
O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência.
As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo.
O que, acima de tudo, as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis, como estimulante, até à eclosão do senso moral, que faz nasça de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, como nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.
O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.” 4
O homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso.
“O corpo não dá cólera àquele que não na tem, assim como não dá os outros vícios; todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito; a não ser assim, onde estariam o mérito e a responsabilidade? O homem que é deformado não pode tornar-se direito, porque o Espírito nisso não pode atuar; mas ele pode modificar o que é do Espírito, quando tem firme a vontade.
Não vos mostra a experiência, a vós espíritas, até onde é capaz de ir o poder da vontade, pelas transformações verdadeiramente miraculosas que se operam sob as vossas vistas? Compenetrai-vos, pois, de que o homem não se conserva vicioso, senão porque quer permanecer vicioso; de que aquele
que queira corrigir-se sempre o pode. De outro modo, não existiria para o homem a lei do progresso.” 5
Eis um exemplo notável do poder da vontade sobre as paixões, do qual reproduzimos aqui uma parte: 6
“Um jovem de vinte e três anos, o Sr. A..., de Paris, iniciado no Espiritismo apenas há dois meses, com tal rapidez assimilou o seu alcance que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um moço, e só uma coisa prova: a leviandade e um entusiasmo irrefletido.
Seja. Mas continuemos. Esse jovem irrefletido tinha, como ele próprio reconhece, um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível disposição para a cólera, desde sua infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se uma coisa não estivesse em seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não estivesse pronto em um minuto, entrava em furores, a ponto de tudo arrebentar.
Chegava a tal ponto que um dia, no paroxismo da cólera, atirando-se contra a mãe, lhe disse: “Vai-te embora, ou eu te mato!” Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais nem as exortações da religião tinham podido vencer esse caráter indomável, aliás compensado por vasta inteligência, uma instrução cuidada e os mais nobres sentimentos.
Dirão que é o efeito de um temperamento bilioso-sanguíneo-nervoso, resultado do organismo e, consequentemente, arrastamento irresistível. Resulta de tal sistema que se, em seus desatinos, tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria tido por causa um excesso de bile. Disso ainda resulta que, a menos que modificasse o temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse moço estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.
- Conheceis um remédio para tal estado patológico?
- Nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa atenuar a abundância de secreções mórbida.
- Ora, o que não pode a Ciência, o Espiritismo faz, não lentamente e por força de um esforço contínuo, mas instantaneamente. Alguns dias bastaram para fazer desse jovem um ser suave e paciente. A certeza adquirida da vida futura; o conhecimento do objetivo da vida terrena; o sentimento da dignidade do homem, revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal; a responsabilidade daí decorrente; o pensamento de que a maior parte dos males terrenos são a consequência de nossos atos; todas estas ideias, bebidas num estudo sério do Espiritismo, produziram em seu cérebro uma súbita revolução.
Pareceu-lhe que um véu se erguera acima de seus olhos e a vida se lhe apresentou sob outra face. Certo de que tinha em si um ser inteligente, independente da matéria, se disse: “Este ser deve ter uma vontade, ao passo que a matéria não a tem. Então, ele pode dominar a matéria.” Daí este outro raciocínio: “O resultado de minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta, portanto é inútil, porque assim não progredi. Ela me produz o mal e nenhum bem me dá em troca. Além disto, ela pode impelir-me a atos censuráveis e até criminosos.”
Ele quis vencer, e venceu.
“Desde então, mil ocasiões surgiram que antes o teriam enfurecido, mas ante elas ficou impassível e indiferente, com grande estupefação de sua mãe. Ele sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o recalcava e o forçava a descer.
Um milagre não teria feito melhor, mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa Revista não bastaria para registrá-los, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal, relativos a reformas morais dos mais inveterados hábitos. Citamos este como um notável exemplo do poder da vontade e, além disso, porque levanta um importante problema que só o Espiritismo pode resolver.
A propósito perguntava-nos o Sr. A... se seu Espírito era responsável por seus arrastamentos, ou se apenas sofria a influência da matéria. Eis a nossa resposta:
Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o quisestes seriamente, detivestes o movimento sanguíneo. Assim, se tivésseis querido antes, os acessos teriam cessado mais cedo e não teríeis ameaçado a vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza? É o corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poderiam ser atribuídos ao afluxo sanguíneo, mas, fútil ou não, tinham por causa uma contrariedade.
Ora, é evidente que o contrariado não era o corpo, mas o Espírito, muito suscetível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema orgânico irritável, que teria ficado em repouso, se não tivesse sido provocado.”(...)
Lembrai-vos de que querer é poder.
As predisposições instintivas que o homem já traz ao nascer não são obstáculo ao exercício do livre-arbítrio?
“As predisposições instintivas são as do Espírito antes de sua encarnação; conforme seja ele mais ou menos adiantado, elas podem solicitá-lo a atos repreensíveis, no que será secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições; não há, porém, arrastamento irresistível quando se tem a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder.” 7
“A questão do livre-arbítrio se pode resumir assim: o homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que seja incitado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que sobrevenham, mas será sempre livre de agir ou não agir.
Assim, o livre-arbítrio existe para ele, quando no estado de Espírito, ao fazer a escolha da existência e das provas e, como encarnado, na faculdade de ceder ou de resistir aos arrastamentos a que todos nos submetemos voluntariamente. Cabe à educação combater essas más tendências. Ela terá êxito nesse combate quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene.
Desprendido da matéria e no estado de erraticidade, o Espírito procede à escolha de suas futuras existências corporais, de acordo com o grau de perfeição a que haja chegado e é nisso, como dissemos, que consiste sobretudo o seu livre-arbítrio. Essa liberdade, a encarnação não a anula. Se ele cede à influência da matéria, é que sucumbe nas provas que por si mesmo escolheu. Para ter quem o ajude a vencê-las, concedido lhe é invocar a assistência de Deus e dos Espíritos bons.” 8
“Os Espíritos que sucumbem são geralmente levados a dizer que tiveram uma carga superior às próprias forças; é um meio de escusar-se a seus próprios olhos, e ainda um resto de orgulho: eles não querem ter falido por sua própria falta. Deus não dá a ninguém mais do que se possa suportar, e não pede a ninguém mais do que se possa dar; ele não exige que a árvore recém-nascida dê frutos como a que atingiu total desenvolvimento.
Deus dá aos Espíritos a liberdade; o que lhes falta é a vontade, e a vontade depende somente deles; com a vontade não há tendências viciosas que não se possa vencer; mas, quando o Espírito se compraz numa tendência, é natural que não faça esforços para a superar. Somente a si deve atribuir as consequências que daí resultem.” 9
O corpo físico é meio de progresso para o Espírito.
“Normalmente, a encarnação não é uma punição para o Espírito, conforme pensam alguns, mas uma condição inerente à inferioridade do Espírito e um meio de ele progredir. (O Céu e o Inferno, cap. III, nos 8 e seguintes.)
À medida que progride moralmente, o Espírito se desmaterializa, isto é, depura-se,com o subtrair-se à influência da matéria; sua vida se espiritualiza, suas faculdades e percepções se ampliam; sua felicidade se torna proporcional ao progresso realizado.
Entretanto, como atua em virtude do seu livre-arbítrio, pode ele, por negligência ou má vontade, retardar o seu avanço; prolonga, conseguintemente, a duração de suas encarnações materiais, que, então, se lhe tornam uma punição, pois que, por falta sua, ele permanece nas categorias inferiores, obrigado a recomeçar a mesma tarefa. Depende, pois, do Espírito abreviar, pelo trabalho de depuração executado sobre si mesmo, a extensão do período das encarnações.” 10
“Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós; muitos, contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que lhe teria sido possível evitar.
Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações se forraria.”(...)
“Ele tem o livre-arbítrio, e por consequência a escolha entre fazer e não fazer; que ele dome suas paixões animais; que não tenha ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; que não seja dominado pelo egoísmo; que purifique sua alma por bons sentimentos; que ele faça o bem; que não ligue às coisas deste mundo importância que elas não merecem; então, mesmo sob seu envoltório corporal, está já depurado, está já desprendido da matéria e, quando deixar esse envoltório, não mais sofrerá sua influência.” 11
“Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, que têm por único objetivo o bem; em si mesmo encontra o homem tudo o que lhe é necessário para segui-las; sua rota é traçada por sua consciência; a lei divina está gravada em seu coração; e, ao demais, Deus lhas lembra constantemente por intermédio de seus messias e seus profetas, por todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte.
Se o homem se conformasse rigorosamente às leis divinas, indubitavelmente evitaria os mais agudos males e viveria feliz na Terra. Se ele não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, e sofre então as consequências. (Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nos 4, 5, 6 e seguintes.)12
A vontade não é um ser, uma substância qualquer; não é, sequer, uma propriedade da matéria mais etérea; a vontade é o atributo essencial do Espírito, isto é, do ser pensante.13
Referência:
1 Revista Espírita, dezembro de 1864 - Da comunhão de pensamentos.
2 Hahnemann. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos - Instruções dos Espíritos - A cólera, item 10.
3 O Livro dos Espíritos, parte terceira - Das leis morais, cap. X - 9. Lei de liberdade - Resumo teórico do móvel das ações humanas, item 8
4 A Gênese, cap. III - O bem e o mal - O instinto e a inteligência, itens 18 e 19.
5 Hahnemann. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IX - Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos - Instruções dos Espíritos - A cólera, item 10.
6 Extrato dos trabalhos da Sociedade Espírita de Paris, publicado na Revista Espírita de julho de 1863.
7 O Livro dos Espíritos, item 845.
8 O Livro dos Espíritos, parte terceira - Das leis morais, cap. X - 9. Lei de liberdade - Resumo teórico do móvel das ações humanas, item 872.
9 O Céu e o Inferno - Exemplos - Capítulo IV - Espíritos sofredores - Príncipe Ouran.
10 A Gênese, cap. XI - Gênese espiritual - Encarnação dos Espíritos, item 26.
11 O Livro dos Espíritos - Parte Segunda - Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos, cap. VI - Da vida espírita – Ensaio teórico da sensação nos Espíritos, item 257.
12 A Gênese, cap. III - O bem e o mal - Origem do bem e do mal, item 6.
13 O Livro dos Médiuns - segunda parte - Das manifestações espíritas, cap. VIII - Do laboratório do mundo invisível - Ação magnética curadora, item 131.
Terezinha Colle