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11 janeiro 2014

A Misericórdia Divina e a Questão Social -



A MISERICÓRDIA DIVINA E A QUESTÃO SOCIAL

Diante dos graves problemas sociais, que não são apenas econômicos, mas espelham os disparates, as grandes contradições entre o luxo e a miséria, a doença, a invasão da intimidade das pessoas, a loucura e os vícios que corroem a alma e tornam perplexos os momentos de cada pessoa num mundo que atinge cinco bilhões de habitantes, treme o homem contemporâneo.

Aquele que não aceita nem Deus nem o Espírito, nada de espiritual, como nós vemos o espiritual, que limita seu horizonte ao percurso berço-túmulo, gerencia sua angústia dentro de um código de vida específico, nem por isso egoísta ou alienado. Às vezes, pelo contrário, dando de si mesmo e exercendo um humanismo comovente.

Mas o crente terá muitas dúvidas. Foi ensinado que a existência de Deus se manifesta pela sua misericórdia e que a solicitude divina é tal que não cai um só cabelo de nossa cabeça sem que Ele saiba. Então, se perguntará, tímida ou abertamente: “Onde está Deus? Como se manifestará essa solicitude no mundo, se para onde olharmos tudo nos parece dominado pelo mal, pela corrupção, pelo cinismo dos que vilipendiam o bem e usufruem as delícias do poder, do dinheiro, das condições de bem-estar, enquanto a maioria esmagadora sofre a pena?”

Se o crente pensar nos ensinos de sua igreja, certamente ficará em dúvida sobre a sabedoria divina. Se Deus teve o poder de transformar, por um sopro, o barro em homem, por que não colocou nele um ingrediente mais forte, mais apaixonado pelo bem? Por que o deixou entregue às forças do mal, mais propenso ao erro do que ao acerto? Por que fez da conquista da felicidade, do paraíso, do nirvana, uma meta quase impossível?

REFÚGIO

E os espíritas, como enfrentam essa realidade?

“Nosso refúgio é a Doutrina Espírita, que não só explica as razões de tantos sofrimentos e incompreensões, como aponta suas complexas causas, de origem individual e coletiva...” Esse trecho, extraído de um artigo que analisava os problemas atuais, em conhecida revista espírita, sintetiza a pretensa solução que muitos adeptos do Espiritismo afirmam encontrar para as questões sociais.

Supõem que tudo se ajusta magicamente, atribuindo a culpa ao indivíduo e à sociedade por não terem obedecido à Lei Divina.

Não basta dizer “és assim porque pecaste”. De nada resolve acumular o Espírito com culpas reais e imaginárias, como se ele não fizesse parte do conjunto. O pensamento espírita é dinâmico, sistêmico, holístico e não pode reduzir-se a mero indicador de erros e justificador de injustiças por uma interpretação incorreta da Justiça Divina.

Muitos espíritas ainda raciocinam dualisticamente, em estrito sentido newtoniano e cartesiano. Acreditam que o universo funciona como um relógio sincrônico, um mecanismo pesado e infalível, de modo que a lei de causa e efeito se abate sobre o Espírito, dentro de uma visão de tempo e espaço absoluto e fora da pessoa.

Precisamos nos livrar do maniqueísmo psicológico que divide o mundo entre o bem e o mal, profano e divino, César e Deus, espírito e matéria. E incorporarmos a mensagem espírita, as contribuições da cultura, as ideias e propostas de humanistas, materialistas ou espiritualistas, reelaborando-as dentro da nossa ótica.

No “Manifesto Comunista”, Marx, analisando o dinamismo das transformações sociais diz: “Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis são descartadas; todas as novas revelações recém-formadas se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sábios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens” (citado por Marshall Berman no livro “Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar”, pág. 93 - Companhia das Letras).

A citação de Marx é feita porque qualquer problema de modificação social, não apenas econômica, mas em sua dimensão total, terá nele um ponto de apoio, uma referência inevitável. Mas, alguns espíritas, senão a maioria dos que pensam em termos de Doutrina, permanecem adstritos a uma análise simplista dos problemas sociais. É o que se depreende desse trecho de artigo publicado em revista centenária: “Em 1848, dois pensadores alemães, Karl Marx e Engels, lançaram o célebre “Manifesto Comunista” que haveria de influenciar poderosamente a história econômica e política da Humanidade...” (...) no mesmo ano do aparecimento do “Manifesto Comunista”, o Mundo Espiritual desencadeia as manifestações dos fenômenos espíritas começando pelos raps de Hydesville. (...) Estava lançado, nos tempos modernos, o grande desafio entre duas correntes de pensamento que se contrapõem por sua natureza. De um lado o materialismo envolvente, apelando para o imediatismo da vida, para o bem-estar do corpo físico a qualquer custo, com o culto do egoísmo de indivíduos e nações, usando a violência e a luta de classes sociais, como um meio de atingir seus fins. (...) De outro lado, o reconhecimento de todas as necessidades do homem, mas não apenas no terreno material e transitório. Também no campo espiritual, já que ele é um ser espiritual, por excelência.”

O que o autor das linhas que transcrevemos esqueceu-se de dizer é que a reação de Marx e de todos os socialistas como Proudhon, Saint-Simon, Fourier, Owen, decorre do fato de que a revolução industrial massacrava o homem, reduzindo-o a uma posição inferior à máquina e que antes e depois disso, o camponês era servo da gleba, parte dos mecanismos produtivos, uma espécie de gado inteligente. E que tudo isso era permitido, aceito, benzido, enquanto a sociedade pretensamente cuidava do futuro espiritual, era religiosa, pensava em Deus e em sua misericórdia.

As propostas de Marx e seu pensamento, pelo menos teoricamente, não apelavam para o egoísmo. Ao contrário, pediam a solidariedade internacional, a cooperação comunitária e a distribuição equitativa dos bens. Se existe um regime egoísta esse é, sem dúvida, o capitalista.

Nada é profano, porque tudo é divino. Não existe a luta entre César e Deus, espírito e matéria, passado e futuro. O homem é divino, o mal é divino, o bem é divino, porque tudo reflete momentos, instantes, reflexões, experiências que se renovam, reciclam, passam e repassam incessantemente.

NOVA ORDEM SOCIAL

Para os religiosos, inclusive os religiosos espíritas, a felicidade na Terra parece utopia. Mesmo quando se raciocina em termos imediatos, diante do perigo atômico, o futuro figura-se, às vezes, como um deserto árido criado pelas explosões atômicas, com corpos disformes e almas vazias. Deixaremos de cantar louvores a Deus nos altares das Igrejas, perderemos a fé que remove montanhas, abandonaremos o trigo ao joio e choraremos as lágrimas do apocalipse? Conquistaremos o Reino ou sucumbiremos pela angústia que o Criador colocou em nós, dando-nos o desejo e a esperança?

Será também utopia crer no homem, na sua capacidade de superar-se, de tornar-se um ser realmente humano? Tais questões se impõem, porque, segundo Allan Kardec, o objetivo final do Espiritismo é influenciar uma nova ordem social, com os subsídios de sua doutrina apoiada em fatos inconclusos.

Como influenciar a sociedade afastando-se dela? Pelo exemplo de cada um, responder-se-á. Sem dúvida, ninguém duvida que sem a adesão pessoal aos códigos de ética, comportamento ou moral que elege, tudo não passará de simulação, de engano lamentável, com frutos inócuos, tanto individual como coletivamente. O que se vê, porém, é que essa reforma íntima se institucionaliza, torna-se um programa de atuação ativista e é vista dentro de parâmetros, de modelos estabelecidos pela tradição, pela força de ordenações.

A presença de Deus, a misericórdia divina, que o Espiritismo afirma e resgata da crendice e da perplexidade do crente, não se conforma com a visão míope, tanto do que pede a intervenção divina para poupar-se da participação ativa, como do que a vê somente nos lances da dor, do sofrimento.

Essa presença tem sido feita constantemente, pela abertura da liberdade para o Espírito crescer e pela criação do processo dinâmico de aprendizado, repetição e reelaboração vivencial, seja pela reencarnação ou pela expansão da inteligência.

Vieram profetas, missionários, messias. Pregaram a verdade. Ergueram a voz nos desertos da vida, fertilizando o coração humano com as esperanças do céu. Vieram os filósofos e espargiram a dúvida que possibilita a pesquisa e o crescimento do intelecto. Vieram os santos, cujas vidas se tomaram a moldura da fé e do desprendimento, nas trilhas da caridade.

Vieram os cientistas e transformaram a ignorância em conhecimento e em tecno-logia, criando novas perspectivas para o progresso e o bem-estar.

São lições, sementes, luzes que estabelecem, em seu tempo, a base para a renovação, a conscientização dos valores da vida.

A incompetência das religiões em mostrar a misericórdia divina na participação ativa das transformações sociais é patente. Apartando-o da vida, tornando-o omisso, afastado, indiferente à sorte da criatura, brandindo o chicote para punir, mas aparentemente impotente para sustar os atos de violência contra o fraco, desprotegido, o humilde, exigindo lealdade, fé, renúncia de si mesmo, como condição de penetrar no céu além da morte, num caminho regado de lágrimas, choro e saudade, tomam Deus cruel.

VOCAÇÃO SOCIAL

Existem muitas propostas para a solução dos problemas sociais. Todas são, geralmente, utópicas, enquanto desconhecerem que qualquer projeto coletivo só terá sucesso a partir da modificação da pessoa. Isso, porém, não isola, separa, divide a questão social, como impossível de ser conjuntamente realizada. Aliás, não há crescimento pessoal possível sem a integração no social.

O que pretendemos, então?

Certamente não é engrossar propostas ideológicas, demagógicas e irrealísticas. Mas, queremos a valorização do homem, da mulher, da pessoa humana, em todos os sentidos: físicos, educacionais, espirituais, humanos, sociais, tantos quantos sejam os nomes, os ramos, as direções que queira ou possam dar às necessidades integradoras, totalizadoras do ser humano.

Não será isso possível sem o saneamento econômico. Sem a disseminação dos recursos sanitários, educação livre e aberta, do salário justo, da distribuição da riqueza; sem a preservação do meio ambiente, da saúde do corpo e do espírito. Sem o amor, sem a paixão.

Pretender separar, dicotomizar a questão, é cair na cilada da “salvação”, meta egoísta que olha narcisisticamente para si mesmo e pouco se importa com os outros.

A vocação do Espiritismo é social. Não a de se tomar a religião dominante, de todos, com poder temporal e espiritual. Mas a de se misturar nos conflitos da vida, apontando uma saída.


Jaci Regis (1932-2010)

Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita, ano I, nº 3 – Licespe, Santos-SP.  Os intertítulos, no lugar de algarismos romanos, foram acrescentados pelo Pense.

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