A MISERICÓRDIA DIVINA E A QUESTÃO SOCIAL
Diante dos graves
problemas sociais, que não são apenas econômicos, mas espelham os
disparates, as grandes contradições entre o luxo e a miséria, a doença, a
invasão da intimidade das pessoas, a loucura e os vícios que corroem a
alma e tornam perplexos os momentos de cada pessoa num mundo que atinge
cinco bilhões de habitantes, treme o homem contemporâneo.
Aquele
que não aceita nem Deus nem o Espírito, nada de espiritual, como nós
vemos o espiritual, que limita seu horizonte ao percurso berço-túmulo,
gerencia sua angústia dentro de um código de vida específico, nem por
isso egoísta ou alienado. Às vezes, pelo contrário, dando de si mesmo e
exercendo um humanismo comovente.
Mas o crente terá muitas
dúvidas. Foi ensinado que a existência de Deus se manifesta pela sua
misericórdia e que a solicitude divina é tal que não cai um só cabelo de
nossa cabeça sem que Ele saiba. Então, se perguntará, tímida ou
abertamente: “Onde está Deus? Como se manifestará essa solicitude no
mundo, se para onde olharmos tudo nos parece dominado pelo mal, pela
corrupção, pelo cinismo dos que vilipendiam o bem e usufruem as delícias
do poder, do dinheiro, das condições de bem-estar, enquanto a maioria
esmagadora sofre a pena?”
Se o crente pensar nos ensinos de sua
igreja, certamente ficará em dúvida sobre a sabedoria divina. Se Deus
teve o poder de transformar, por um sopro, o barro em homem, por que não
colocou nele um ingrediente mais forte, mais apaixonado pelo bem? Por
que o deixou entregue às forças do mal, mais propenso ao erro do que ao
acerto? Por que fez da conquista da felicidade, do paraíso, do nirvana,
uma meta quase impossível?
REFÚGIO
E os espíritas, como enfrentam essa realidade?
“Nosso
refúgio é a Doutrina Espírita, que não só explica as razões de tantos
sofrimentos e incompreensões, como aponta suas complexas causas, de
origem individual e coletiva...” Esse trecho, extraído de um artigo que
analisava os problemas atuais, em conhecida revista espírita, sintetiza a
pretensa solução que muitos adeptos do Espiritismo afirmam encontrar
para as questões sociais.
Supõem que tudo se ajusta magicamente, atribuindo a culpa ao indivíduo e à sociedade por não terem obedecido à Lei Divina.
Não
basta dizer “és assim porque pecaste”. De nada resolve acumular o
Espírito com culpas reais e imaginárias, como se ele não fizesse parte
do conjunto. O pensamento espírita é dinâmico, sistêmico, holístico e
não pode reduzir-se a mero indicador de erros e justificador de
injustiças por uma interpretação incorreta da Justiça Divina.
Muitos
espíritas ainda raciocinam dualisticamente, em estrito sentido
newtoniano e cartesiano. Acreditam que o universo funciona como um
relógio sincrônico, um mecanismo pesado e infalível, de modo que a lei
de causa e efeito se abate sobre o Espírito, dentro de uma visão de
tempo e espaço absoluto e fora da pessoa.
Precisamos nos livrar
do maniqueísmo psicológico que divide o mundo entre o bem e o mal,
profano e divino, César e Deus, espírito e matéria. E incorporarmos a
mensagem espírita, as contribuições da cultura, as ideias e propostas de
humanistas, materialistas ou espiritualistas, reelaborando-as dentro da
nossa ótica.
No “Manifesto Comunista”, Marx, analisando o
dinamismo das transformações sociais diz: “Todas as relações fixas,
imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis são
descartadas; todas as novas revelações recém-formadas se tornam
obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar,
tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a
enfrentar com sentidos mais sábios suas reais condições de vida e sua
relação com outros homens” (citado por Marshall Berman no livro “Tudo
Que é Sólido Desmancha no Ar”, pág. 93 - Companhia das Letras).
A
citação de Marx é feita porque qualquer problema de modificação social,
não apenas econômica, mas em sua dimensão total, terá nele um ponto de
apoio, uma referência inevitável. Mas, alguns espíritas, senão a maioria
dos que pensam em termos de Doutrina, permanecem adstritos a uma
análise simplista dos problemas sociais. É o que se depreende desse
trecho de artigo publicado em revista centenária: “Em 1848, dois
pensadores alemães, Karl Marx e Engels, lançaram o célebre “Manifesto
Comunista” que haveria de influenciar poderosamente a história econômica
e política da Humanidade...” (...) no mesmo ano do aparecimento do
“Manifesto Comunista”, o Mundo Espiritual desencadeia as manifestações
dos fenômenos espíritas começando pelos raps de Hydesville. (...) Estava
lançado, nos tempos modernos, o grande desafio entre duas correntes de
pensamento que se contrapõem por sua natureza. De um lado o materialismo
envolvente, apelando para o imediatismo da vida, para o bem-estar do
corpo físico a qualquer custo, com o culto do egoísmo de indivíduos e
nações, usando a violência e a luta de classes sociais, como um meio de
atingir seus fins. (...) De outro lado, o reconhecimento de todas as
necessidades do homem, mas não apenas no terreno material e transitório.
Também no campo espiritual, já que ele é um ser espiritual, por
excelência.”
O que o autor das linhas que transcrevemos
esqueceu-se de dizer é que a reação de Marx e de todos os socialistas
como Proudhon, Saint-Simon, Fourier, Owen, decorre do fato de que a
revolução industrial massacrava o homem, reduzindo-o a uma posição
inferior à máquina e que antes e depois disso, o camponês era servo da
gleba, parte dos mecanismos produtivos, uma espécie de gado inteligente.
E que tudo isso era permitido, aceito, benzido, enquanto a sociedade
pretensamente cuidava do futuro espiritual, era religiosa, pensava em
Deus e em sua misericórdia.
As propostas de Marx e seu
pensamento, pelo menos teoricamente, não apelavam para o egoísmo. Ao
contrário, pediam a solidariedade internacional, a cooperação
comunitária e a distribuição equitativa dos bens. Se existe um regime
egoísta esse é, sem dúvida, o capitalista.
Nada é profano, porque
tudo é divino. Não existe a luta entre César e Deus, espírito e
matéria, passado e futuro. O homem é divino, o mal é divino, o bem é
divino, porque tudo reflete momentos, instantes, reflexões, experiências
que se renovam, reciclam, passam e repassam incessantemente.
NOVA ORDEM SOCIAL
Para
os religiosos, inclusive os religiosos espíritas, a felicidade na Terra
parece utopia. Mesmo quando se raciocina em termos imediatos, diante do
perigo atômico, o futuro figura-se, às vezes, como um deserto árido
criado pelas explosões atômicas, com corpos disformes e almas vazias.
Deixaremos de cantar louvores a Deus nos altares das Igrejas, perderemos
a fé que remove montanhas, abandonaremos o trigo ao joio e choraremos
as lágrimas do apocalipse? Conquistaremos o Reino ou sucumbiremos pela
angústia que o Criador colocou em nós, dando-nos o desejo e a esperança?
Será
também utopia crer no homem, na sua capacidade de superar-se, de
tornar-se um ser realmente humano? Tais questões se impõem, porque,
segundo Allan Kardec, o objetivo final do Espiritismo é influenciar uma
nova ordem social, com os subsídios de sua doutrina apoiada em fatos
inconclusos.
Como influenciar a sociedade afastando-se dela? Pelo
exemplo de cada um, responder-se-á. Sem dúvida, ninguém duvida que sem a
adesão pessoal aos códigos de ética, comportamento ou moral que elege,
tudo não passará de simulação, de engano lamentável, com frutos inócuos,
tanto individual como coletivamente. O que se vê, porém, é que essa
reforma íntima se institucionaliza, torna-se um programa de atuação
ativista e é vista dentro de parâmetros, de modelos estabelecidos pela
tradição, pela força de ordenações.
A presença de Deus, a
misericórdia divina, que o Espiritismo afirma e resgata da crendice e da
perplexidade do crente, não se conforma com a visão míope, tanto do que
pede a intervenção divina para poupar-se da participação ativa, como do
que a vê somente nos lances da dor, do sofrimento.
Essa presença
tem sido feita constantemente, pela abertura da liberdade para o
Espírito crescer e pela criação do processo dinâmico de aprendizado,
repetição e reelaboração vivencial, seja pela reencarnação ou pela
expansão da inteligência.
Vieram profetas, missionários, messias.
Pregaram a verdade. Ergueram a voz nos desertos da vida, fertilizando o
coração humano com as esperanças do céu. Vieram os filósofos e
espargiram a dúvida que possibilita a pesquisa e o crescimento do
intelecto. Vieram os santos, cujas vidas se tomaram a moldura da fé e do
desprendimento, nas trilhas da caridade.
Vieram os cientistas e
transformaram a ignorância em conhecimento e em tecno-logia, criando
novas perspectivas para o progresso e o bem-estar.
São lições, sementes, luzes que estabelecem, em seu tempo, a base para a renovação, a conscientização dos valores da vida.
A
incompetência das religiões em mostrar a misericórdia divina na
participação ativa das transformações sociais é patente. Apartando-o da
vida, tornando-o omisso, afastado, indiferente à sorte da criatura,
brandindo o chicote para punir, mas aparentemente impotente para sustar
os atos de violência contra o fraco, desprotegido, o humilde, exigindo
lealdade, fé, renúncia de si mesmo, como condição de penetrar no céu
além da morte, num caminho regado de lágrimas, choro e saudade, tomam
Deus cruel.
VOCAÇÃO SOCIAL
Existem muitas propostas
para a solução dos problemas sociais. Todas são, geralmente, utópicas,
enquanto desconhecerem que qualquer projeto coletivo só terá sucesso a
partir da modificação da pessoa. Isso, porém, não isola, separa, divide a
questão social, como impossível de ser conjuntamente realizada. Aliás,
não há crescimento pessoal possível sem a integração no social.
O que pretendemos, então?
Certamente
não é engrossar propostas ideológicas, demagógicas e irrealísticas.
Mas, queremos a valorização do homem, da mulher, da pessoa humana, em
todos os sentidos: físicos, educacionais, espirituais, humanos, sociais,
tantos quantos sejam os nomes, os ramos, as direções que queira ou
possam dar às necessidades integradoras, totalizadoras do ser humano.
Não
será isso possível sem o saneamento econômico. Sem a disseminação dos
recursos sanitários, educação livre e aberta, do salário justo, da
distribuição da riqueza; sem a preservação do meio ambiente, da saúde do
corpo e do espírito. Sem o amor, sem a paixão.
Pretender
separar, dicotomizar a questão, é cair na cilada da “salvação”, meta
egoísta que olha narcisisticamente para si mesmo e pouco se importa com
os outros.
A vocação do Espiritismo é social. Não a de se tomar a
religião dominante, de todos, com poder temporal e espiritual. Mas a de
se misturar nos conflitos da vida, apontando uma saída.
Jaci Regis (1932-2010)
Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita, ano I, nº 3 – Licespe, Santos-SP. Os intertítulos, no lugar de algarismos romanos, foram acrescentados pelo Pense.
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