ESPIRITISMO E HUMANISMO
Comecemos por uma
questão indispensável: sendo o Espiritismo uma doutrina muito ampla, há
de ter, e tem mesmo, um conteúdo de humanismo em suas implicações. A
palavra humanismo , como inúmeras outras palavras, já mudou de
sentido mais de uma vez e, por isso, pode ser entendida em acepções
diversas. É problema de semântica. O valor das palavras sofre
influências da época, do meio e dos fatos novos. Com relação à
predominância da Teologia, na Idade Média, segundo a qual o homem nada
significava, porque "não caía uma folha das árvores sem a vontade de
Deus", a noção de humanismo corporificou-se no homem como o eixo, o
centro de tudo. Era a valorização do homem, que precisava ocupar seu
verdadeiro lugar na Terra. O movimento renascentista, que sucedeu ao
ciclo medieval, deu muito valor ao papel do homem no mundo. A palavra
humanismo, dentro desse contexto, dava idéia de uma "tomada de posição",
restaurando como que a supremacia do homem.
Com o decorrer do tempo, no entanto, surgiu um movimento novo, no Renascentismo (também chamado de Renascença ),
definindo-se justamente pela fixação de certos padrões. Houve um
momento de desordem espiritual, como é comum em todos os períodos de
transição, uma tendência para o relaxamento, uma espécie de fobia,
querendo acabar com as formas e os conceitos do passado. Justamente por
isso, e para evitar a desagregação, ou talvez o caos, deu-se a "volta
aos clássicos", isto é, um movimento que tinha por objetivo retomar o
contato com as fontes gregas, restaurar as heranças clássicas da
cultura. Humanismo, a esta altura, já significava não apenas a
posição do homem, como expressão decisiva sobre a Terra, mas também o
culto dos valores e da forma nas letras, nas artes, nos gostos, etc. Era
realmente o retorno às "fontes clássicas". Humanismo, então,
pressupunha o conhecimento das velhas matrizes do pensamento.
A
idéia, de certo modo, ainda é válida, até hoje. É considerado humanista,
no sentido antigo, aquele que tem uma cultura geral muito sólida, com
fundamentos mais profundos nas ciências básicas, na história, nas
línguas. Allan Kardec, por exemplo. Podemos considerá-lo pedagogo,
moralista, pensador entre os mais autênticos, mas é bom não esquecer que
sua formação, antes de tudo, era de humanista. Pelas questões que
levantou, pela segurança com que formulou as teses fundamentais da
Doutrina em seus diálogos com os espíritos instrutores e pelas próprias
linhas mestras de sua estrutura intelectual, vê-se logo que havia, nele,
os recursos culturais de humanista completo. (*)
Com a
valorização da cultura especializada, entretanto, os humanistas
clássicos já estão desaparecendo. O Brasil teve alguns deles e foram
notáveis. E é o caso de nosso grande Rui Barbosa. Ainda há pouco, em
artigo no "Anuário Espírita" de 970, de Araras, S. Paulo, escrevemos o
seguinte: "Rui Barbosa era humanista, e dos maiores e mais completos do
Brasil. Lia infatigavelmente. Além de portentoso saber jurídico, que era
seu campo de atividades, tinha conhecimentos gerais de várias ciências,
como de literatura, vernáculo etc. Entendia alguma coisa de Medicina,
dizem que às vezes fazia diagnóstico, lia Homeopatia, leu Espiritismo...
Hoje, porém, Rui certamente já não poderia, com a intensa vida
profissional das “cidades trepidantes”, como o Rio, dedicar-se a tantos
assuntos ao mesmo tempo. Outro humanista brasileiro: Pandiá Calógeras,
que era engenheiro de minas, homem público, mas tinha conhecimentos
positivos em vários campos do saber, fora de sua profissão. Capistrano
de Abreu, homem sem curso acadêmico, de hábitos um tanto esquisitos,
conseguiu formar um lastro admirável de conhecimentos lingüísticos,
históricos, filosóficos, literários.
No meio espírita, e sem
favor nem exagero, podemos apontar Carlos Imbassahy como verdadeiro tipo
de humanista. E ele o era na plenitude da expressão exata. Ocorre-nos
lembrar, entre outros, Ismael Gomes Braga, que também era um espírita de
cultura humana muito extensa, embora muita gente só o conhecesse
através do Esperanto, de que foi, na realidade, um idealista. Mas Ismael
tinha boa bagagem de humanidades.
Humanista, em suma, é aquele
que, não tendo formação especializada ou não sendo propriamente um
técnico, tem conhecimentos fundamentais em vários sentidos. Não se deve
confundir, todavia, o vero humanista com o simples "livresco", que lê um
pouco de tudo, mas sempre "por alto". Mas o mundo de hoje é dos
técnicos, dos especialistas, dizem. É verdade, até certo ponto. Apesar
disto, é preciso notar que a especialização muito rígida e fechada pode
criar certas deformações. As pessoas que se especializam demais levam
certa vantagem na vida prática, mas ficam muito limitadas, desde que não
cuidem de enriquecer sua cultura através de outros campos, ainda que
seja apenas por diletantismo.
Afinal, que tem tudo isso com o
Espiritismo? Vamos ver. Se o título desta exposição é "Espiritismo e
Humanismo", claro que devemos relacionar um assunto com o outro. E o que
iremos fazer, daqui por diante. O conceito de humanismo, nos dias
presentes, principalmente depois da II Guerra, tomou dimensões
diferentes. Já se entende, hoje, por humanismo não apenas conhecimentos
gerais, bebidos nas "belas letras", como se dizia antigamente, mas
também a preocupação absorvente com o homem. A acepção atual de
humanismo volta-se para o homem, antes de tudo, justamente porque o
homem passou a ser, agora, o centro de todas as cogitações.
Humanismo
é, portanto, a filosofia que visa ao homem, à dignidade da pessoa
humana, de que tanto se fala, muitas vezes apenas teoricamente. E como
considerar criteriosamente essa nova concepção à luz da Doutrina
Espírita? Posta a questão em termos espíritas, devemos saber,
preliminarmente, se a Doutrina ficou apenas no plano ideal ou se tem, na
verdade, um conteúdo humano. Neste particular, a Doutrina Espírita é
profundamente humanista. Não é exagero, é observação. Mas isto é apenas
uma premissa, pois não podemos parar aqui.
Quando dizemos que o
Espiritismo é uma doutrina profundamente humanista, claro que estamos
vendo o conjunto, não estamos considerando apenas um aspecto, seja qual
for a relevância imediata desse aspecto. Se quisermos inicialmente
situar a Doutrina dentro do contexto histórico do humanismo, segundo a
compreensão antiga de conhecimentos gerais, "letras clássicas" etc.,
encontraremos elementos que nos permitem formar uma síntese, englobando
vários subsídios da cultura humana: Biologia, Psicologia, Física e assim
por diante. Há umas tantas questões, por exemplo, em que a Doutrina
Espírita, embora sem minúcias técnicas, leva o estudioso forçosamente a
ciências pouco familiares aos conhecimentos comuns, como é o caso da
Geologia e da Astronomia. O objetivo da Doutrina não é aprofundar o
estudo da formação da Terra nem tampouco cogitar de mecânica celeste ou
movimento dos astros, mas a tese da evolução, que é uma de suas teses
fundamentais, não pode deixar de suscitar inquirições sobre as formas de
vida e a sucessão das camadas geológicas, o meio físico etc. A geologia
histórica, portanto, há de entrar em cogitações, pelo menos em
determinado momento. A tese da pluralidade dos mundos habitados — tese
básica da Doutrina — pressupõe inevitavelmente algumas noções gerais de
Astronomia. Cabe aos especialistas, é óbvio, a palavra técnica, o
emprego da terminologia própria, mas esses problemas podem muito bem ser
apreciados no quadro dos conhecimentos gerais, no ponto em que se
tornam necessários, como elementos auxiliares. É o que se dá com a
Doutrina Espírita.
A Doutrina também envereda algumas vezes pelas ciências sociais, levantando questões atinentes à Sociologia, principalmente.
>E
a Doutrina, por sua vez, também não discute o problema da criminalidade
em face das condições sociais? Forçosamente vai entrar na Criminologia,
não como especialidade, mas naturalmente como disciplina subsidiária de
comprovação. Podemos observar, ainda, que a condensação geral das teses
espíritas incide no problema racial, em passagens especiais, quando
trata das desigualdades das raças humanas e dos caracteres dos tipos
representativos de certos grupos. É Antropologia. Naturalmente o
antropólogo de profissão poderá formular algumas questões de outro modo,
com esquematizações mais técnicas, mas verdade é que a Doutrina também
toca em problemas de Antropologia. Fá-lo por decorrência natural de suas
premissas gerais e não com o propósito de dar soluções específicas,
fora de sua verdadeira problemática.
Tudo isso, evidentemente,
em função de uma tese central: a reencarnação. O desdobramento da
Doutrina, como se vê, pode estender-se a diversos ângulos da cultura.
Isto não quer dizer que a Doutrina Espírita seja obrigada a fazer uma
sistematização dessas disciplinas ou pretenda monopolizar todo o saber,
como se fosse uma enciclopédia no estilo antigo... Não ! Essa conjunção
de proposições e conhecimentos diversos vem apenas mostrar a extensão
cultural do Espiritismo, fazendo ver, notadamente àqueles que têm ainda
noções muito incompletas ou falsas, que a Doutrina Espírita não é um
manual ou breviário de "falar com os mortos" ou simples tabela de
regrinhas para "adivinhar o futuro". Espiritismo é conhecimento, e
conhecimento no sentido intensivo. E nesta ordem de idéias,
conseqüentemente, que a Doutrina Espírita se torna humanista à medida que notamos suas relações com diversas províncias da cultura.
Para
a verificação de nossa assertiva, bastaria observar a distribuição e a
convergência das matérias dispostas em três obras básicas: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e A Gênese .
São livros em que se condensam os princípios gerais da Doutrina sem
prejuízo do fio de seqüência que se prolonga através das outras obras.
Não incluímos, aqui, O Evangelho Segundo o Espiritismo ,
justamente porque esta obra é o coroamento, é o vértice de toda a
estrutura da Doutrina, representando a essência moral, o código de ética
por excelência.
Queremos dizer, em suma, que a organização da
Doutrina, em suas afirmações, não se limita pura e simplesmente ao fato
das comunicações, fato que teria pouca significação, se fosse apenas
objeto de curiosidade, mas a comunicação em si mesma envolve uma série
de questões. O caso da obsessão ou da "loucura sem lesão" porventura não
nos obriga a uma incursão na fisiologia cerebral? E disciplina médica,
mas entra forçosamente no exame do problema mediúnico. Se a Doutrina
discute o problema da estrutura psíquica do indivíduo em relação com as
desigualdades espirituais, determinando as variações de comportamento ou
de reações em face do meio biológico, do meio cósmico e do meio social,
naturalmente está nos domínios da Psicologia.
Poder-se-á dizer
que a Psicologia de hoje não se interessa mais pela alma como entidade
independente, porque considera essa concepção mais filosófica do que
científica. Diga-se que é metafísica, é psicologia tradicional ou coisa
equivalente, mas o que estamos querendo demonstrar é que as preocupações
do Espiritismo não dizem respeito exclusivamente ao problema da alma
(espírito) "no espaço", mas também às relações da alma com o corpo, sua
influência na formação do ser e no processo evolutivo. Temos, aí,
problemas de Biologia, como de Fisiologia. E tudo isso está no corpo da
Doutrina.
Quando a Doutrina, finalmente, estuda as funções do
perispírito no organismo, os fenômenos de "desdobramento" e as
materializações, os deslocamentos de objeto sem contacto, vai provocar a
discussão de problemas de peso, pulsações, estabilidade, ação sobre a
matéria, não é verdade? E não entram, aí, certas leis de Física e de
Fisiologia? E não há fenômenos mediúnicos em que se dá alteração até na
organização vocal? Diante de fenômenos tão inusitados, tão
impressionantes, poder-se-ia então negar a correlação do Espiritismo com
alguns ramos da Ciência? E não seria até o caso de fazermos uma revisão
das noções que aprendemos acerca da matéria?...
Com estas
considerações, lançadas de passagem ou de simples "pinceladas", como
geralmente se diz, objetivamos apenas fixar um ponto: a amplitude do
Espiritismo perante os conhecimentos gerais. Cabe, aqui, portanto, e com
inteira propriedade de expressão, chamá-lo de Doutrina humanista.
Vamos a outro ponto: o conceito moderno de humanismo ,
o que, aliás, já foi referido. A Doutrina Espírita é humanista em suas
conseqüências, porque se preocupa, em tudo por tudo, com o homem, e
propõe soluções para os problemas que dependem da sociedade. Há
problemas, como se sabe, que estão vinculados a existências passadas e
fazem parte do chamado "acervo cármico" do indivíduo, como dizem os
teosofistas, mas também há problemas que a sociedade pode evitar e há
dificuldades que a organização social deve resolver. Logo, a Doutrina
Espírita não está à margem da vida social. Se, portanto, o que se
entende, hoje, por humanismo é o interesse pelo homem, é a preservação
de sua dignidade, é o aprimoramento das instituições sociais, a Doutrina
Espírita é humanista, sem tirar nem pôr.
(*) O curso de
preparatórios, que se fazia anteriormente para chegar a escolas
superiores, chamava-se "curso de humanidades", porque compreendia os
conhecimentos gerais considerados indispensáveis à formação básica,
antes de entrar em Faculdade.
Deolindo Amorim (1908-1984)
Artigo
transcrito do livro Idéias e Reminiscências Espíritas, de Deolindo
Amorim, lançado pelo Instituto Maria, de Juiz de Fora (MG), em 1980.
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