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06 janeiro 2014

Espiritismo e Humanismo - Deolindo Amorim


ESPIRITISMO E HUMANISMO

Comecemos por uma questão indispensável: sendo o Espiritismo uma doutrina muito ampla, há de ter, e tem mesmo, um conteúdo de humanismo em suas implicações. A palavra humanismo , como inúmeras outras palavras, já mudou de sentido mais de uma vez e, por isso, pode ser entendida em acepções diversas. É problema de semântica. O valor das palavras sofre influências da época, do meio e dos fatos novos. Com relação à predominância da Teologia, na Idade Média, segundo a qual o homem nada significava, porque "não caía uma folha das árvores sem a vontade de Deus", a noção de humanismo corporificou-se no homem como o eixo, o centro de tudo. Era a valorização do homem, que precisava ocupar seu verdadeiro lugar na Terra. O movimento renascentista, que sucedeu ao ciclo medieval, deu muito valor ao papel do homem no mundo. A palavra humanismo, dentro desse contexto, dava idéia de uma "tomada de posição", restaurando como que a supremacia do homem.

Com o decorrer do tempo, no entanto, surgiu um movimento novo, no Renascentismo (também chamado de Renascença ), definindo-se justamente pela fixação de certos padrões. Houve um momento de desordem espiritual, como é comum em todos os períodos de transição, uma tendência para o relaxamento, uma espécie de fobia, querendo acabar com as formas e os conceitos do passado. Justamente por isso, e para evitar a desagregação, ou talvez o caos, deu-se a "volta aos clássicos", isto é, um movimento que tinha por objetivo retomar o contato com as fontes gregas, restaurar as heranças clássicas da cultura. Humanismo, a esta altura, já significava não apenas a posição do homem, como expressão decisiva sobre a Terra, mas também o culto dos valores e da forma nas letras, nas artes, nos gostos, etc. Era realmente o retorno às "fontes clássicas". Humanismo, então, pressupunha o conhecimento das velhas matrizes do pensamento.

A idéia, de certo modo, ainda é válida, até hoje. É considerado humanista, no sentido antigo, aquele que tem uma cultura geral muito sólida, com fundamentos mais profundos nas ciências básicas, na história, nas línguas. Allan Kardec, por exemplo. Podemos considerá-lo pedagogo, moralista, pensador entre os mais autênticos, mas é bom não esquecer que sua formação, antes de tudo, era de humanista. Pelas questões que levantou, pela segurança com que formulou as teses fundamentais da Doutrina em seus diálogos com os espíritos instrutores e pelas próprias linhas mestras de sua estrutura intelectual, vê-se logo que havia, nele, os recursos culturais de humanista completo. (*)

Com a valorização da cultura especializada, entretanto, os humanistas clássicos já estão desaparecendo. O Brasil teve alguns deles e foram notáveis. E é o caso de nosso grande Rui Barbosa. Ainda há pouco, em artigo no "Anuário Espírita" de 970, de Araras, S. Paulo, escrevemos o seguinte: "Rui Barbosa era humanista, e dos maiores e mais completos do Brasil. Lia infatigavelmente. Além de portentoso saber jurídico, que era seu campo de atividades, tinha conhecimentos gerais de várias ciências, como de literatura, vernáculo etc. Entendia alguma coisa de Medicina, dizem que às vezes fazia diagnóstico, lia Homeopatia, leu Espiritismo... Hoje, porém, Rui certamente já não poderia, com a intensa vida profissional das “cidades trepidantes”, como o Rio, dedicar-se a tantos assuntos ao mesmo tempo. Outro humanista brasileiro: Pandiá Calógeras, que era engenheiro de minas, homem público, mas tinha conhecimentos positivos em vários campos do saber, fora de sua profissão. Capistrano de Abreu, homem sem curso acadêmico, de hábitos um tanto esquisitos, conseguiu formar um lastro admirável de conhecimentos lingüísticos, históricos, filosóficos, literários.

No meio espírita, e sem favor nem exagero, podemos apontar Carlos Imbassahy como verdadeiro tipo de humanista. E ele o era na plenitude da expressão exata. Ocorre-nos lembrar, entre outros, Ismael Gomes Braga, que também era um espírita de cultura humana muito extensa, embora muita gente só o conhecesse através do Esperanto, de que foi, na realidade, um idealista. Mas Ismael tinha boa bagagem de humanidades.

Humanista, em suma, é aquele que, não tendo formação especializada ou não sendo propriamente um técnico, tem conhecimentos fundamentais em vários sentidos. Não se deve confundir, todavia, o vero humanista com o simples "livresco", que lê um pouco de tudo, mas sempre "por alto". Mas o mundo de hoje é dos técnicos, dos especialistas, dizem. É verdade, até certo ponto. Apesar disto, é preciso notar que a especialização muito rígida e fechada pode criar certas deformações. As pessoas que se especializam demais levam certa vantagem na vida prática, mas ficam muito limitadas, desde que não cuidem de enriquecer sua cultura através de outros campos, ainda que seja apenas por diletantismo.

Afinal, que tem tudo isso com o Espiritismo? Vamos ver. Se o título desta exposição é "Espiritismo e Humanismo", claro que devemos relacionar um assunto com o outro. E o que iremos fazer, daqui por diante. O conceito de humanismo, nos dias presentes, principalmente depois da II Guerra, tomou dimensões diferentes. Já se entende, hoje, por humanismo não apenas conhecimentos gerais, bebidos nas "belas letras", como se dizia antigamente, mas também a preocupação absorvente com o homem. A acepção atual de humanismo volta-se para o homem, antes de tudo, justamente porque o homem passou a ser, agora, o centro de todas as cogitações.

Humanismo é, portanto, a filosofia que visa ao homem, à dignidade da pessoa humana, de que tanto se fala, muitas vezes apenas teoricamente. E como considerar criteriosamente essa nova concepção à luz da Doutrina Espírita? Posta a questão em termos espíritas, devemos saber, preliminarmente, se a Doutrina ficou apenas no plano ideal ou se tem, na verdade, um conteúdo humano. Neste particular, a Doutrina Espírita é profundamente humanista. Não é exagero, é observação. Mas isto é apenas uma premissa, pois não podemos parar aqui.

Quando dizemos que o Espiritismo é uma doutrina profundamente humanista, claro que estamos vendo o conjunto, não estamos considerando apenas um aspecto, seja qual for a relevância imediata desse aspecto. Se quisermos inicialmente situar a Doutrina dentro do contexto histórico do humanismo, segundo a compreensão antiga de conhecimentos gerais, "letras clássicas" etc., encontraremos elementos que nos permitem formar uma síntese, englobando vários subsídios da cultura humana: Biologia, Psicologia, Física e assim por diante. Há umas tantas questões, por exemplo, em que a Doutrina Espírita, embora sem minúcias técnicas, leva o estudioso forçosamente a ciências pouco familiares aos conhecimentos comuns, como é o caso da Geologia e da Astronomia. O objetivo da Doutrina não é aprofundar o estudo da formação da Terra nem tampouco cogitar de mecânica celeste ou movimento dos astros, mas a tese da evolução, que é uma de suas teses fundamentais, não pode deixar de suscitar inquirições sobre as formas de vida e a sucessão das camadas geológicas, o meio físico etc. A geologia histórica, portanto, há de entrar em cogitações, pelo menos em determinado momento. A tese da pluralidade dos mundos habitados — tese básica da Doutrina — pressupõe inevitavelmente algumas noções gerais de Astronomia. Cabe aos especialistas, é óbvio, a palavra técnica, o emprego da terminologia própria, mas esses problemas podem muito bem ser apreciados no quadro dos conhecimentos gerais, no ponto em que se tornam necessários, como elementos auxiliares. É o que se dá com a Doutrina Espírita.

A Doutrina também envereda algumas vezes pelas ciências sociais, levantando questões atinentes à Sociologia, principalmente.

>E a Doutrina, por sua vez, também não discute o problema da criminalidade em face das condições sociais? Forçosamente vai entrar na Criminologia, não como especialidade, mas naturalmente como disciplina subsidiária de comprovação. Podemos observar, ainda, que a condensação geral das teses espíritas incide no problema racial, em passagens especiais, quando trata das desigualdades das raças humanas e dos caracteres dos tipos representativos de certos grupos. É Antropologia. Naturalmente o antropólogo de profissão poderá formular algumas questões de outro modo, com esquematizações mais técnicas, mas verdade é que a Doutrina também toca em problemas de Antropologia. Fá-lo por decorrência natural de suas premissas gerais e não com o propósito de dar soluções específicas, fora de sua verdadeira problemática.

Tudo isso, evidentemente, em função de uma tese central: a reencarnação. O desdobramento da Doutrina, como se vê, pode estender-se a diversos ângulos da cultura. Isto não quer dizer que a Doutrina Espírita seja obrigada a fazer uma sistematização dessas disciplinas ou pretenda monopolizar todo o saber, como se fosse uma enciclopédia no estilo antigo... Não ! Essa conjunção de proposições e conhecimentos diversos vem apenas mostrar a extensão cultural do Espiritismo, fazendo ver, notadamente àqueles que têm ainda noções muito incompletas ou falsas, que a Doutrina Espírita não é um manual ou breviário de "falar com os mortos" ou simples tabela de regrinhas para "adivinhar o futuro". Espiritismo é conhecimento, e conhecimento no sentido intensivo. E nesta ordem de idéias, conseqüentemente, que a Doutrina Espírita se torna humanista à medida que notamos suas relações com diversas províncias da cultura.

Para a verificação de nossa assertiva, bastaria observar a distribuição e a convergência das matérias dispostas em três obras básicas: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns e A Gênese . São livros em que se condensam os princípios gerais da Doutrina sem prejuízo do fio de seqüência que se prolonga através das outras obras. Não incluímos, aqui, O Evangelho Segundo o Espiritismo , justamente porque esta obra é o coroamento, é o vértice de toda a estrutura da Doutrina, representando a essência moral, o código de ética por excelência.

Queremos dizer, em suma, que a organização da Doutrina, em suas afirmações, não se limita pura e simplesmente ao fato das comunicações, fato que teria pouca significação, se fosse apenas objeto de curiosidade, mas a comunicação em si mesma envolve uma série de questões. O caso da obsessão ou da "loucura sem lesão" porventura não nos obriga a uma incursão na fisiologia cerebral? E disciplina médica, mas entra forçosamente no exame do problema mediúnico. Se a Doutrina discute o problema da estrutura psíquica do indivíduo em relação com as desigualdades espirituais, determinando as variações de comportamento ou de reações em face do meio biológico, do meio cósmico e do meio social, naturalmente está nos domínios da Psicologia.

Poder-se-á dizer que a Psicologia de hoje não se interessa mais pela alma como entidade independente, porque considera essa concepção mais filosófica do que científica. Diga-se que é metafísica, é psicologia tradicional ou coisa equivalente, mas o que estamos querendo demonstrar é que as preocupações do Espiritismo não dizem respeito exclusivamente ao problema da alma (espírito) "no espaço", mas também às relações da alma com o corpo, sua influência na formação do ser e no processo evolutivo. Temos, aí, problemas de Biologia, como de Fisiologia. E tudo isso está no corpo da Doutrina.

Quando a Doutrina, finalmente, estuda as funções do perispírito no organismo, os fenômenos de "desdobramento" e as materializações, os deslocamentos de objeto sem contacto, vai provocar a discussão de problemas de peso, pulsações, estabilidade, ação sobre a matéria, não é verdade? E não entram, aí, certas leis de Física e de Fisiologia? E não há fenômenos mediúnicos em que se dá alteração até na organização vocal? Diante de fenômenos tão inusitados, tão impressionantes, poder-se-ia então negar a correlação do Espiritismo com alguns ramos da Ciência? E não seria até o caso de fazermos uma revisão das noções que aprendemos acerca da matéria?...

Com estas considerações, lançadas de passagem ou de simples "pinceladas", como geralmente se diz, objetivamos apenas fixar um ponto: a amplitude do Espiritismo perante os conhecimentos gerais. Cabe, aqui, portanto, e com inteira propriedade de expressão, chamá-lo de Doutrina humanista.

Vamos a outro ponto: o conceito moderno de humanismo , o que, aliás, já foi referido. A Doutrina Espírita é humanista em suas conseqüências, porque se preocupa, em tudo por tudo, com o homem, e propõe soluções para os problemas que dependem da sociedade. Há problemas, como se sabe, que estão vinculados a existências passadas e fazem parte do chamado "acervo cármico" do indivíduo, como dizem os teosofistas, mas também há problemas que a sociedade pode evitar e há dificuldades que a organização social deve resolver. Logo, a Doutrina Espírita não está à margem da vida social. Se, portanto, o que se entende, hoje, por humanismo é o interesse pelo homem, é a preservação de sua dignidade, é o aprimoramento das instituições sociais, a Doutrina Espírita é humanista, sem tirar nem pôr.

(*) O curso de preparatórios, que se fazia anteriormente para chegar a escolas superiores, chamava-se "curso de humanidades", porque compreendia os conhecimentos gerais considerados indispensáveis à formação básica, antes de entrar em Faculdade.

Deolindo Amorim (1908-1984)

Artigo transcrito do livro Idéias e Reminiscências Espíritas, de Deolindo Amorim, lançado pelo Instituto Maria, de Juiz de Fora (MG), em 1980.


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