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02 janeiro 2014

Um Bom Conselho - Krishnamurti de Carvalho Dias


UM BOM CONSELHO

Não adianta chorar o leite derramado, nossa unidade como movimento já era. Estamos divididos em dois hemisférios: quem pensa religiosamente o Espiritismo e se comporta direitinho como as religiões; e quem procura vivenciar tudo de modo laico, evitando os estilos e padrões religiosos, a ideologia religiosa.

Isso é um fato naturalíssimo e francamente espanta que não nos tivéssemos dado conta antes de sua existência: em lugar de ficar com discussões públicas e turras privadas, o que se precisa fazer é promover encontros, debates, painéis, coisas assim, em busca de um novo pacto social, que regule as relações entre os dois hemisférios, para que convivam sem se agredir. Afinal, todos somos espíritas e civilizados.

O chamado “Pacto Áureo” sempre foi pechisbeque, uma pirita, o ouro dos tolos. Nada teve de áureo realmente, elaborado sem a participação da FEB, só depois que esta foi muito requestada é que concordou em entrar, sob condições, porém: ficaria o sistema resultante sob sua presidência, com um Conselho Federativo Nacional embutido nela mesma, uma anomalia realmente. Esse conselho traçaria os rumos federativos, mas como peça ou parte do organograma da FEB, não como uma entidade autônoma, sobreposta a todas as entidades compactuadas.

Só ingênuos e otimistas panglossianos aceitariam essa: a FEB era e é roustainguista, propõe Kardec como um mero colega de codificação, repartindo esta com Roustaing, pondo este como um super-revelador, que inclusive mudou os rumos da Codificação ao dar a conhecida guinada para a religiosidade que caracteriza o roustainguismo. Como entregar à FEB a posição de cabeça do sistema e executora do plano federativo? Foi uma cincada histórica, que deu no que deu e só podia mes¬mo dar nisto.

O tempo já passado, de quase 40 anos, mostrou bem o desacerto da medida. A FEB procurou continuamente a confessionalização do movimento e uma onda de religiosismo invadiu o movimento inteiro, quebrando a harmonia “ecológica” do sistema. Nem todos os espíritas estão com a FEB ou são religiosistas, têm direitos como divergentes e precisam ser respeitados em sua posição laica. Isso é pacífico.

Esse desrespeito é evidente: toda vez que o Espiritismo é apresentado como “uma religião” o que acontece? Esse rótulo é genérico, passa a pesar sobre todos os espíritas, indistintamente, sem distinguir quem de fato é religioso de quem não é.

Além dessa indistinção injusta, desse nivelamento ilegítimo, falso sob todos os ângulos, fica havendo também a descaracterização, a perda de identidade do Espiritismo e a sonegação do fato histórico de que Kardec repelia isso, que ele negava tal imputação, que só foi inventada pela Igreja.

É preciso, evidentemente, que haja um novo pacto social entre os espíritas para que essas coisas fiquem resolvidas. Onde os direitos de cada um fossem respeitados, tanto os religiosos tivessem reconhecido seu direito de pensar o Espiritismo como quiserem, quanto os não-religiosos o direito inalienável, também, de se verem reconhecidos como o que são, por suas próprias opções e não por rótulos impróprios para eles, cabíveis só a outrem.

Para resolver isso é fácil, basta começarmos a falar nisso. Quando engrossar esse clamor, batendo na mesma tecla repetitivamente, então o movimento concordará em discutir o assunto.

Ninguém vai imaginar que alguém proporá um movimento espírita “laico” ou “independente”, que confrontasse outro rotulado de “religioso” ou “evangélico”. Seria ridículo. A distinção se faria em nível das sociedades. Estas é que se proclamariam tais quais são nos seus estatutos. Naturalmente que as religiosas diriam isso, que são sociedades religiosas, ao passo que as formadas por gente não religiosa, deixariam claro esse traço na redação estatutária.

O que está em jogo é questão de opinião e de gosto. A questão de fato está fora de discussão: para Kardec, o Espiritismo não era uma religião e isso liquida o assunto; para a Igreja, sim é que o era e com isso também se põe uma pedra em cima do caso.

A questão de fato é indiscutível, pois trata-se de fato consumado, histórico, insuscetível de modificação. Resta discutir a questão de opinião: há uma banda da comunidade que deseja constituir-se como uma religião; pois há outra banda que não deseja fazê-lo.

Ninguém pode impor nada a ninguém. Só o Estado pode fazê-lo e ninguém terá a fraqueza de ir pedir que o Estado arbitre a pendência. O recurso é tentarmos resolver tudo em conversações, buscando um pacto social novo, sem as tolices e ingenuidades da primeira vez. Se não der certo, haverá a separação branca como um casal que se separa e continua a viver sob o mesmo teto, casados, mas sem relação alguma. Neste caso, os centros declarados religiosos e os não-religiosos coexistiriam lado a lado, em compreensível estado de constrangimento, mas poderiam sempre conviver, relacionar-se e até poderia surgir, ao lado do plano federativo atual, um outro' federativo também, mas só das entidades não-religiosas. As duas vertentes federativas é que juntas comporiam o movimento global.




Krishnamurti de Carvalho Dias
Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita
Abril de 1987, Ano I, nº 1. Licespe - Santos-SP.

 

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