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13 janeiro 2020

As normas de Kardec - J.Herculano Pires




AS NORMAS DE KARDEC


O desenvolvimento dos princípios espíritas não pode ser feito de maneira atrabiliária, pois no campo do Conhecimento há leis de lógica e de logística que regem o processo cultural. Kardec estabeleceu as normas que temos de observar para não cairmos nos enganos e nas ilusões tão comuns à nossa precipitação. Essas normas, elas mesmas, estão hoje sendo acrescidas de meios novos de verificação da realidade através da Ciência e da Filosofia. O bom senso, como ensinou Kardec, é o fio de prumo que nos garante a construção de um Conhecimento mais amplo e mais rico, mas ao mesmo tempo mais preciso.

Usar do bom senso é o primeiro preceito da normativa de Kardec.


Examinar com rigor a linguagem dos Espíritos comunicantes, submetê-los a testes de bom senso e conhecimento, verificar a relação de realidade dos conceitos por eles enunciados (relação do seu pensamento com os fatos, as coisas e os seres), enquadrar os seus ensinos e revelações no contexto cultural da época, verificando o alcance abusivo ou não das afirmações mais audaciosas — eis os elementos que temos de observar no trato da mediunidade, se não quisermos cair em situações difíceis, a que fatalmente nos levariam espíritos imaginosos ou pseudo-sábios. E ao lado disso submeter tudo quanto possível à comprovação experimental, à pesquisa.

Bem sabemos que tudo isso requer espírito metódico, um fundo básico de conhecimentos gerais, capacidade normal de discernimento, superação da curiosidade doentia, controle rigoroso da ambição e da vaidade, equilíbrio do raciocínio, maturidade intelectual, critério científico de observação e pesquisa e firme decisão de não se deixar levar pelas aparências, aprofundando sempre o exame de todos os aspectos dos problemas e das circunstâncias. Sim, tudo isso é difícil, mas sem isso não faremos ciência e sem ciência não teremos Espiritismo. Se alguém notar que não dispõe dessas qualidades deve reconhecer-se inábil para a investigação espírita. É melhor aceitar com humildade as próprias limitações do que aventurar-se a realizações impossíveis.

A luta necessária.


Infelizmente a maioria das criaturas não gosta de reconhecer os seus limites. A vaidade e a ambição levam muita gente a dar passos mais largos do que as pernas permitem. É o que hoje vemos, de maneira assustadora, em nosso meio espírita. Os casos de fascinação multiplicam-se ao nosso redor. Pessoas que podiam ser úteis se transformam em focos de confusão e perturbação, entravando a marcha do Espiritismo com a sustentação de teorias absurdas que levam a doutrina ao ridículo. Em nosso país esses casos se tornam mais graves por causa da falta geral de cultura. As pessoas incultas e ingênuas se deixam levar muito facilmente ao fanatismo, ante o brilho fictício de pessoas inteligentes e cultas, mas dominadas por fascinações perigosas.


A mania do cientificismo vem produzindo grandes estragos em nosso movimento espírita. Qualquer possuidor de diplomas de curso superior se julga capacitado a transformar-se em cientista do dia para a noite. E logo consegue uma turma de adeptos vaidosos, prontos a seguir o iluminado que lhes empresta um pouco do seu falso brilho. O desejo de elevar-se acima dos outros, conhecendo mais e sabendo mais, é praticamente incontrolável na maioria das pessoas. O resultado é o que vemos. Há mais joio do que trigo em nossa seara espírita. A luta contra essa situação é das mais árduas. 

Mas, árdua ou não, tem de ser enfrentada pelos que vêem as coisas de maneira mais clara. Temos de ferir susceptibilidades, magoar o amor próprio de amigos e companheiros, levantar no próprio meio espírita inimigos gratuitos, provocar revides apaixonados. Mas, de duas, uma: ficamos com a verdade ou ficamos com o erro, defendemos a doutrina ou nos acomodamos na falsa tolerância, clamando por uma paz de pantanal, que nada mais é do que covardia e traição à verdade. Aí estão, diante de nossos olhos, as fascinações da vaidade nos empantanando os caminhos da evolução natural e necessária da doutrina. Ou lutamos contra elas ou incentivaremos a sua propagação e proliferação.


Podemos enumerar as mais acentuadas e nefastas: o roustainguismo, defendido e semeado sob o prestígio da FEB; o Divinismo ou Espiritismo Divinista, que contradiz a própria essência racional do Cristianismo e do Espiritismo; o ramatisismo, que conseguiu envenenar a própria FEESP e ainda hoje não foi completamente eliminado da sua estrutura; o heterodoxismo ou armondismo (mistura de doutrinas ocultistas com o Espiritismo), que anda de mãos dadas com o ramatisismo; a teoria do continuum mediúnico, que vem de fora, com ares de teoria sociológica, estabelecendo confusões, com suposto apoio científico, entre Espiritismo e Umbanda; o andreluizismo, que à revelia de André Luiz é sustentado por instituições que se apóiam na caridade para desviar adeptos ingênuos da verdadeira compreensão doutrinária. E outras subcorrentes que amanhã se tornarão fortes e dominadoras, se não forem sustadas a tempo.


Todos esses movimentos se valem de uma arma contra os que perseveram no campo limpo da doutrina: a acusação de sectarismo. Fazem seitas e acusam os outros de sectários. Clamam pelo direito de alargar e arejar os conceitos fundamentais de Kardec, sem que os seus expoentes se lembrem de que não possuem condições culturais para essa tarefa de gigantes. Afrontam e amesquinham Kardec na vaidosa suposição de que o estão auxiliando, quando não o agridem abertamente, com o menosprezo à sua missão espiritual e à sua qualificação cultural. Não foram ainda capazes de encarar a missão de Kardec e a obra de Kardec sem pensar primeiro em si mesmos e nas suas supostas capacidades culturais ou supostas habilitações espirituais.


Em meio a esse panorama de confusões, mutilado em suas pretensões iniciais, mas ainda atuando em desvios estratégicos, subsiste a ameaça do Espiritismo Corpuscular. E ao seu lado surgem outros movimentos pseudoculturais, como o atual Massenismo da antiga e veneranda Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, com sua direção entregue às mãos de um leigo, a suscitar inovações aberrantes na prática doutrinária, em nome de uma suposta evolução, e uma onda de culturalismo místico que se opõe à restauração do verdadeiro Espiritismo nos quadros de instituições representativas da doutrina.


O desenvolvimento da Parapsicologia e a falta de capacidade de nossos meios universitários para acompanharem essa evolução científica deu motivo a ampla e escandalosa exploração desse novo ramo das Ciências psicológicas em nossa terra. Uma exploração dirigida em dois sentidos: o combate pseudocientífico ao Espiritismo e o comércio desenfreado de cursos deformantes sobre o assunto.


A reação espírita surgiu de maneira acertada: colocar o problema em seus devidos termos, mostrando as ligações naturais entre Espiritismo e Parapsicologia, sem misturar as duas Ciências nem deturpá-las. Mas não tardou a surgir no próprio meio espírita os que se aproveitaram da situação para a defesa de seus pontos de vista pessoais, aumentando a confusão e torcendo a realidade parapsicológica a favor de suas teorias pseudo-espíritas. A falta de formação cultural do nosso povo ofereceu condições propícias ao desenvolvimento dessa contrafacção, tão nefasta como a outra, a facção deformadora da nova ciência.


J. Herculano Pires
Livro: A Pedra e o Joio

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