FIDELIDADE DOUTRINÁRIA
Há pessoas que estão sempre a buscar atalhos, soluções prontas, para agirem sem o esforço da análise, do exame cuidadoso, conforme recomenda o Apóstolo Paulo: “Examinai tudo; retende o bem.” (I Ts, 5: 21). Essas pessoas, por certo, ainda não entenderam a inspirada assertiva do Codificador, ao grafar na folha de rosto do primeiro livro eminentemente religioso da Doutrina, O Evangelho segundo o Espiritismo: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.” O esforço para a construção dessa fé inabalável é penoso para aqueles que desejam receber tudo pronto. Os que assim se posicionam têm muitas dúvidas no terreno da fidelidade doutrinária. Seria do seu agrado o estabelecimento de um index para orientar o que deveriam ler, de um manual de procedimentos para as atividades desenvolvidas nos centros espíritas e, também, de uma cartilha de orientação para o seu próprio procedimento em sociedade.
Em relação à fidelidade doutrinária, há posições as mais variadas assumidas pelas pessoas. Há aquelas que desejariam houvesse uma lista de obras “condenadas”, o que lhes facilitaria a escolha para a leitura de informações seguras, sem terem que “esquentar a cabeça”. No outro extremo, outras há que reagem negativamente a qualquer tipo de avaliação ou de juízo formulado sobre uma publicação, tachando tal ato como estabelecimento de um index.
Nesse contexto, deve ser lembrado que uma das características marcantes do Espiritismo é exatamente a liberdade que confere aos seus profitentes. Liberdade aprendida com Jesus, que nunca constrangeu ninguém a fazer ou deixar de fazer algo, simplesmente porque lhe fora ordenado. O Mestre sempre buscava levar o ouvinte a entender os seus ensinamentos, raciocinando sobre eles, o que obtinha através dos diálogos que estabelecia.
Muitas passagens discutíveis do Novo Testamento, muitas palavras e frases atribuídas a Jesus, lá estão porque o Alto o permitiu. Apesar de muitos cortes, acréscimos e adaptações, o essencial foi conservado intacto. O que se tornou objeto de discussão serve para aprendermos a raciocinar em termos de fé e exercitarmos o bom-senso. Se Jesus tivesse vindo para trazer-nos fórmulas acabadas de salvação – tão a gosto dos simplistas – não teria sido carpinteiro, mas sim canteiro, pois trabalhando com pedras teria oportunidade de deixar seus ensinamentos insculpidos em lajes, como verdadeiras “receitas” de salvação, a serem seguidas ipsis verbis pelos séculos afora. Esse desejo do Mestre, de conduzir seus discípulos ao estudo e à reflexão, fica muito claro quando recomenda: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo, 8: 32).
Dentro dessa perspectiva, como encontrar o ponto de equilíbrio entre os que querem um index e um manual de procedimentos, e aqueles que advogam liberdade ampla, total e irrestrita? Avaliar se uma obra ou uma prática está em consonância com os princípios doutrinários é tarefa para quem conhece realmente a Doutrina. Daí, a necessidade do estudo, da reflexão, da análise serena e desapaixonada, a fim de que se chegue à conclusão do que está de acordo e do que está em confronto com as verdades que o Espiritismo esposa.
A preservação da fidelidade doutrinária no que diz respeito às práticas desenvolvidas numa entidade espírita é mais fácil, pois ninguém usaria velas, bebidas, fumaça, roupas especiais, imagens, rituais, etc. Entretanto, quando se trata do uso da palavra, seja oralmente, seja por escrito, a tarefa de verificação se torna mais difícil. Mais difícil porque esbarra, quase sempre, no personalismo camuflado numa capa de inovação, renovação, atualização, etc.
A mediunidade tem sido veículo para a divulgação de muitas “novidades” que deveriam ter merecido acurado exame antes de se terem transformado em folhetos e, principalmente, em livros. Infelizmente, o encantamento provocado pelo fenômeno ainda oblitera a visão de muitos, conduzindo-os a entendimentos equivocados.
Se houvesse mais estudo da Codificação, por certo o número de obras anti-doutrinárias existentes, tanto pela ação de médiuns quanto de leitores seria bem menor, para não dizermos nulo. Temos o exemplo maior em Kardec, que se conservou sereno e judicioso, embora a imensa emoção que deve ter sentido ao comprovar a imortalidade da alma, ao “descobrir” o Mundo Espiritual, e ao verificar o relacionamento efetivo entre encarnados e desencarnados. É oportuno seja lembrada a sempre atual advertência de Erasto, que Kardec inseriu em O Livro dos Médiuns: “Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.” (item 230).
A necessidade do uso do bom-senso no campo da mediunidade é evidenciada desde os tempos apostólicos, conforme se aprende com o Apóstolo Paulo – seguramente a maior autoridade em assuntos mediúnicos no Cristianismo nascente – que recomenda: “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem.” (I Co, 14: 29). O mesmo cuidado é recomendado por João: “Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus; porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo”. (I Jo, 4: 1).
Essas recomendações continuam atualíssimas, diante do momento que vivemos, pois atravessamos um período que nos requer muita atenção relativamente à fidelidade doutrinária, principalmente no campo mediúnico voltado à produção de livros. Note-se que o vocábulo produção é intencionalmente usado aqui para substituir publicação, pela verdadeira avalancha de obras mediúnicas que invadem as prateleiras das livrarias.
Há uma ânsia desenfreada de se publicar tudo o que médiuns invigilantes produzem, sequiosos de verem seus nomes em capas de livros. Há editoras que descobriram um verdadeiro filão de ouro no meio espírita. Muitos dos que adquirem livros pensando estarem ajudando instituições de amparo a necessitados não são informados do que resta no final, depois de deduzidas as despesas e os ganhos das editoras...
Os adversários do Espiritismo de há muito desistiram de combatê-lo através de ataques exteriores. Agora, eles se imiscuem no nosso meio, onde quase imperceptivelmente, valendo-se da invigilância de expositores e de médiuns, buscam lançar o descrédito através de mensagens fantasiosas, quando não ridículas. Por isso, no quadro atual, mais que nunca, deve ser posta em prática a lapidar recomendação de Jesus: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação (...)” (Mt, 26: 41).
Diante do exposto, fica claro que não se pode nem estabelecer um manual de procedimentos, nem elaborar um index, objetivando a preservação da fidelidade doutrinária. Mas, então, como proceder diante dessa quantidade imensa de obras inovadoras e de posicionamentos inusitados, cujas “revelações” e “modernizações” vão desde o simplesmente discutível ao claramente anti-doutrinário?
Em atitudes discretas, equilibradas, ao amparo da oração sincera, cada espírita consciente deve constituir-se em guardião fiel dos princípios doutrinários, o que será conseguido através do estudo, da reflexão, do uso do bom-senso.
José Passini
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