CARTA DE UM MORTO
Pede-me você notícias do cemitério nas comemorações de Finados. E como
tenho em mãos a carta de um amigo, hoje na Espiritualidade, endereçada a
outro amigo que ainda se encontra na Terra, acerca do assunto, dou-lhe a
conhecer, com permissão dele, a missiva que transcrevo, sem qualquer
referência a nomes, para deixar-lhe a beleza livre das notas pessoais.
Eis o texto em sua feição pura e simples:
Meu caro, você não pode imaginar o que seja entregar à terra a carcaça hirta no dia dois de Novembro.
Verdadeira tragédia para o morto inexperiente.
Lembrar-se-á você de que o enterro de meu velho corpo, corroído pela
doença, realizou-se ao crepúsculo, quando a necrópole enfeitada parecia
uma casa em festa.
Achava-me tristemente instalado no coche fúnebre, montando guarda aos
meus restos, refletindo na miserabilidade da vida humana...
Contemplando de longe minha mulher e meus filhos, que choravam
discretamente num largo automóvel de aluguel, meditava naquele antigo
apontamento de Salomão – vaidade das vaidades, tudo é vaidade –, quando, à entrada do cemitério, fui desalojado de improviso.
Na multidão irrequieta dos vivos na carne, vinha a massa enorme dos
vivos de outra natureza. Eram desencarnados às centenas, que me
apalpavam curiosos, entre o sarcasmo e a comiseração.
Alguns me dirigiam indagações indiscretas, enquanto outros me deploravam a sorte.
Com muita dificuldade, segui o ataúde que me transportava o esqueleto
imóvel e, em vão, tentei conchegar-me à esposa em lágrimas.
Mal pude ouvir a prece que alguns amigos me consagravam, porque, de
repente, a onda tumultuária me arrebatou ao circulo mais íntimo.
Debalde procurei regressar à quadra humilde em que me situaram a sombra
do que eu fora no mundo... Os visitantes terrestres daquela mansão,
pertencente aos supostos finados, traziam consigo imensa turba de almas
sofredoras e revoltadas, perfeitamente jungidas a eles mesmos.
Muitos desses Espíritos, agrilhoados aos nossos companheiros humanos,
gritavam ao pé das tumbas, contando os crimes ocultos que os haviam
arremessado à vala escura da morte, outros traziam nas mãos documentos
acusadores, clamando contra a insânia de parentes ou contra a venalidade
de tribunais que lhes haviam alterado as disposições e desejos.
Pais bradavam contra os filhos. Filhos protestavam contra os pais.
Muitas almas, principalmente aquelas cujos despojos se localizam nos
túmulos de alto preço, penetravam a intimidade do sepulcro e, de lá,
desferiam gemidos e soluços aterradores, buscando inutilmente levantar
os próprios ossos, no intuito de proclamar aos entes queridos verdades
que o tímpano humano detesta ouvir".
Muita gente desencarnada falava acerca de títulos e depósitos
financeiros perdidos nos bancos, de terras desaproveitadas, de casas
esquecidas, de objetos de valor e obras de arte que lhes haviam escapado
às mãos, agora vazias e sequiosas de posse material.
Mulheres desgrenhadas clamavam vingança contra homens cruéis, e homens
carrancudos e inquietos vociferavam contra mulheres insensatas e
delinqüentes.
Talvez porque ainda trouxesse comigo o cheiro do corpo físico, muitos
me tinham por vivo ainda na Terra, capaz de auxiliá-los na solução dos
problemas que lhes escaldavam a mente, e despejavam sobre mim alegações e
queixas, libelos e testemunhos.
Observei que os médicos, os padres e os juízes são as pessoas mais
discutidas e criticadas aqui, em razão dos votos e promessas, socorros e
testamentos, nos quais nem sempre corresponderam à expectativa dos
trespassados.
Em muitas ocasiões, ouvi de amigos espíritas a afirmação de que há
sempre muitos mortos obsidiando os vivos, mas, registrando biografias e
narrações, escutando choro e praga, tanto quanto vendo o retrato real de
muitos, creio hoje que há mais vivos flagelando os mortos, algemando-os
aos desvarios e paixões da carne, pelo menosprezo com que lhes tratam a
memória e pela hipocrisia com que lhes visitam as sepulturas.
Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os
familiares naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém-vindo,
e, somente quando os homens e as mulheres, quase todos protocolares e
indiferentes, se retiraram, é que as almas terrivelmente atormentadas e
infelizes esvaziaram o recinto, deixando na retaguarda tão somente nós
outros, os libertos em dificuldade pacífica, e fazendo-me perceber que o
tumulto no lar dos mortos era uma simples conseqüência da perturbação
reinante no lar dos vivos.
Apaziguado o ambiente, o cemitério pareceu-me um ninho claro e
acolhedor, em que me não faltaram braços amigos, respondendo-me às
súplicas, e a cidade, em torno, figurou-se-me, então, vasta necrópole,
povoada de mausoléus e de cruzes, nos quais os espíritos encarnados e
desencarnados vivem o angustioso drama da morte moral, em pavorosos
compromissos da sombra.
Como vê, enquanto a Humanidade não se habilitar para o respeito à vida
eterna, é muito desagradável embarcar da Terra para o Além, no dia
dedicado por ela ao culto dos mortos que lhe são simpáticos e
antipáticos.
Peça a Jesus, desse modo, para que você não venha para cá, num dia dois
de Novembro. Qualquer outra data pode ser útil e valiosa, desde que se
desagarre daí, naturalmente, sem qualquer insulto à Lei. Rogue também ao
Senhor que, se possível, possa você viajar ao nosso encontro, num dia
nublado e chuvoso, porque, em se tratando de sua paz, quanto mais
reduzido o séqüito no enterro será melhor.
E porque o documento não relaciona outros informes, por minha vez termino também aqui, sem qualquer comentário.
Livro: Cartas e Crônicas
Irmão X - Médium: Francisco Cândido Xavier
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