Nem
sempre divergência significa desunião. Se é verdade que as divergências
ou discordâncias algumas vezes já comprometeram a união entre pessoas e
grupos, não se deve dar a este fato a extensão de uma regra geral, pois
é apenas um episódio discrepante. Onde há duas pessoas frente a frente
sempre há o que ou em que discordar. Seria impossível a existência de um
grupo humano, por menor que fosse, sem um pensamento discordante, sem
uma opinião contrária a qualquer coisa. Entre dois amigos, como entre
dois irmãos muito afins pode haver divergência frontal ou inconciliável
em matéria política, religiosa, social etc., sem que haja qualquer
“arranhão” na amizade. Discutem, discordam, assumem posições opostas,
mas continuam unidos.
Justamente por isso e pelo que observo na
vida cotidiana, não creio que seja necessário abafar as divergências ou
evitar qualquer discussão, ainda que em termos altos, simplesmente para
preservar a união de um grupo ou de uma coletividade inteira. Seria o
caso, em última hipótese, de acabar de vez com o diálogo e adotar logo
um tipo de vida conventual.
O diálogo é uma necessidade, pois é
dialogando que trocamos ideias e permutamos opiniões e experiências. Uma
comunidade que não admite o diálogo está condenada, por si mesma, a
ficar parada no tempo. Cada qual naturalmente deve preparar-se ou
educar-se espiritualmente para discutir ou divergir sem prevenções ou
ressentimentos.
O fato de não concordarmos com a opinião de um
companheiro neste ou naquele sentido ou de não adotarmos a linha de
pensamento de uma instituição deve ser encarado com naturalidade, mas
não deve servir de motivo (jamais!) para que mudemos a maneira de tratar
ou viremos as costas a alguém. Seria o caso de perguntar: e onde está o
Evangelho, que se prega a todo momento?... Como falar em Evangelho, que
é humildade e amor, e fugir a um abraço sincero ou negar um aperto de
mão por causa de uma divergência ou de um ponto de vista.
Então,
não é a divergência aqui ou ali que porventura “cava o abismo da
desunião”, é a incompreensão, o personalismo, o radicalismo do elemento
humano em qualquer campo do pensamento. Já ouvi dizer mais de uma vez
que os espíritas são desunidos por causa das divergências internas.
Sinceramente, não acompanho este ponto de vista. Acho que não há
propriamente desunião, mas apenas desencontro de ideias, fora dos pontos
cardeais da Doutrina. Somos uma comunidade composta de gente emancipada
e por isso mesmo, o campo está sempre aberto ao estudo e à crítica.
Certos
observadores gostariam, por exemplo, que o Movimento Espírita fosse um
“bloco maciço” sem nenhuma nota fora do conjunto. É uma pretensão
utópica, pois não há um movimento religioso, político ou lá o que seja
sem alguma voz discordante, aqui ou ali.
Tomava-se como
referência, até bem pouco tempo, a “unidade monolítica” da Igreja
Católica. Unidade relativa, diga-se de passagem. E o que se vê hoje? O
fracionamento cada vez mais acentuado. Os grupos conservadores, porque
se batem pela manutenção da Igreja tradicional, estão enfrentado os
grupos renovadores, partidários de modificações estruturais; grupos que
querem a Igreja fora da política estão em conflito com os grupos que
querem justamente uma Igreja participante no campo político
Há,
portanto, demanda de alto a baixo, com programas de reforma na
teologia, como na administração e na disciplina eclesiástica. Logo, a
Igreja não oferece hoje a unidade doutrinária que nos apontam às vezes,
como modelo. E o Protestantismo, que é outro grande movimento religioso,
não se divide em denominações e seitas, com características diferentes
entre si? Batistas, presbiterianos, adventistas, congregacionalistas
etc. Não desejo criticar procedimentos religiosos, pois todos os cultos
são respeitáveis, mas estou anotando fatos.
Voltemo-nos para mais
longe, fora da faixa ocidental, e lá está o Budismo, também um
movimento expressivo. Não cabe, aqui, discutir se o Budismo é ou não
religião. Seja como for, ocupa um espaço considerável, mas também se
ramificou. Existe, hoje, pelo menos mais de uma escola budista. O
Positivismo, que viera da França, teve muita força no Brasil, mas não se
manteve íntegro, pois o grande bloco se desmembrou entre científicos e
religiosos no século passado. Sobrevive, hoje, uma religião sem Deus,
sem cogitação acerca da vida futura, mas um culto ritualizado, com
sacerdócio. Muitos discípulos de Augusto Comte não queriam, de forma
alguma, que o Positivismo se transformasse em religião e, por isso, eram
chamados de científicos, ao passo que muitos outros absorveram logo o
Positivismo como Religião da Humanidade. E realmente implantaram um
culto religioso no Apostolado Positivista. Logo, também o Positivismo
não conseguiu sustentar um padrão uniforme.
O fenômeno que se
observa no meio espirita é muito diferente. Sempre houve divergências,
mas não se quebrou a unidade doutrinária, que é fundamental. O
Espiritismo continua a ser um só, inconfundível, não se dividiu em
diversos espiritismos. Há, entre nós, opiniões discordantes em
determinados aspectos, porém, os princípios são os mesmos, não se
alteraram. Não formamos seitas nem correntes à parte, apesar das
divergências. Então, não há motivo para que estejamos vendo desunião
onde há simplesmente desacordo de ideias.
Fonte: Mundo Espírita, abril de 1984, Curitiba-PR. Órgão de divulgação da Federação Espírita do Paraná.
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