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08 dezembro 2013

Intolerância e Preconceito - Deolindo Amorim


INTOLERÂNCIA E PRECONCEITO

Em matéria de prevenções contra qualquer “novidade”, há exemplos abundantes, quer na seara religiosa quer na seara científica. Já vimos, embora de relance, algumas ocorrências características dessa mentalidade. Nem toda pessoa que cuida de ciência ou faz carreira em atividade cientifica é cientista de verdade, pois o cientista, na acepção integral, precisa ter vocação, aptidões e qualidades especiais. Há muita confusão a este respeito.

Do mesmo modo, nem todo aquele que faz um curso de Direito é jurista de verdade; mas quase todo mundo confunde o jurista com qualquer bacharel, pelo simples fato de ser portador de um diploma. Há pessoas que fazem curso de especialização, pertencem a sociedades científicas etc., mas não têm, na realidade, uma formação compatível com a índole da Ciência. É o caso daqueles que ensinam ciências nas escolas, fizeram todos os cursos, lidam com materiais de laboratório, mas nem sempre reagem como homem de mentalidade científica, porque repelem a priori toda ideia nova, qualquer processo que seja diferente dos padrões aceitos. Há ocasiões em que raciocinam mais em termos de , porque prejulgam e às vezes chegam ao extremo de condenar aquilo que ainda não conhecem, ainda não examinaram. Tal procedimento não é de um homem de cultura moderna, é de um vigário de aldeia no século 16.

Os fatos demonstram, a cada dia, que não basta fazer um currículo universitário, não basta apresentar títulos e láureas para ficar verdadeiramente credenciado como cientista. Não. A mentalidade do cientista define-se pelas suas concepções, pelo arejamento de sua cultura, pela independência de suas opiniões, pela sua disposição natural de procurar as manifestações da verdade, venham de onde vierem: o cientista afirma-se, finalmente, pelos horizontes de seu espírito, nunca pelas medalhas que ostenta no peito ou pelos méritos exteriores. É uma qualidade intrínseca, não é extrínseca. Há pessoas que não têm curso sistematizado, nunca passaram por uma Escola Superior, mas possuem naturalmente, uma embocadura científica, uma predisposição muito acentuada para os raciocínios exatos; na prática, no modo de reagir e proceder, revelam muito mais espírito científico do que certas “eminências galardoadas”.

Não é a erudição por si só, como não é o planejamento de um curso acadêmico que faz o cientista; a cultura regular fornece apenas os instrumentos, dá orientação básica, mas ninguém sai cientista de uma Universidade, por mais adiantada que seja ela. É preciso ter formação, e a formação é inerente à estrutura psicológica do indivíduo. Há muita gente, por exemplo, que nunca fez curso de Direito, nunca entrou em Faculdade, mas tem muito mais senso jurídico do que determinados bacharéis.

O espírito cientifico, se é legítimo ou autêntico, nunca repele uma ideia, uma descoberta, sem exame. Justamente por isso, o patrimônio da Ciência sempre se enriqueceu e há de se enriquecer cada vez mais, aproveitando achegas de toda a ordem, até mesmo quando trazidas por elementos leigos.

Nosso índio, lá nas selvas, não ofereceu tanto material terapêutico ao europeu? Não foi aqui, nos aldeamentos indígenas, com a sua “medicina de beberagens”, que os primeiros pesquisadores europeus descobriram as propriedades curativas de certas plantas? Evidentemente o homem de ciência não iria ficar nas “beberagens”, fazendo o empirismo dos índios, mas aproveitou o material, observou bem os processos por eles empregados e, depois, foi aperfeiçoar as técnicas na Europa. Mas levou daqui as primeiras noções, o índio foi o instrumento dessa contribuição cientifica, embora sem saber do papel que estava desempenhando.

A visão da ciência tem de ser sempre e cada vez mais ampla. É bom lembrar que um fabricante de cerveja — Joule — e que nem por isso deixou de ser um físico inglês, fazendo as suas observações nas horas vagas, realizou importantes experiências sobre conservação de energia. Quem o diz é Albert Einstein, em trabalho de colaboração com L. Infield, no livro “Evolução da Física” (Zahar Editores) ). Lá está escrito: “É uma estranha coincidência que todo trabalho fundamental relacionado com a natureza do calor tenha sido realizado por físicos não profissionais”, que consideravam a física como “passatempo”.

A história das ciências, quer nos domínios da Física e da Química, quer nos da Biologia ou de outros ramos, pode enumerar muitos exemplos de pessoas que, não tendo carreira científica, não sendo profissionais, fizeram estudos valiosos: Não seria razoável rejeitar uma colaboração, que pode até provocar uma descoberta, pelo fato de se tratar de elemento não integrado nas corporações acadêmicas.

O horror a inovações, como se vê, tanto se manifesta na vida religiosa, como em qualquer campo de atividade cultural. Sempre houve espíritos avessos à renovação de ideias ou de hábitos. O pior, ainda mais, é que certas reações chegam a tomar feição de guerra de prevenções e ódio, por causa de uma teoria ou de uma técnica, desde que saia dos moldes habituais. O caso da Homeopatia, por exemplo. Hahnemann sofreu hostilidade franca dentro do meio médico. Aqui mesmo, no Brasil, quando se iniciou a difusão da nova doutrina, ainda no tempo do Império, a campanha movida pela corrente alopata foi muito forte. E a Homeopatia, a esse tempo, já era muito conhecida no Velho Mundo. Até o clero, na Bahia, também levantou desconfianças. Quando os homeopatas tentaram introduzir o ensino da doutrina hahnemanniana, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, encontraram oposição frontal. Não houve muita tolerância na cúpula médica. Muita gente combateu a Homeopatia sem fazer estudos sérios, sem qualquer experiência.

O mesmo critério de julgar a priori ainda se observa, até hoje, no que respeita ao Espiritismo e, principalmente, aos médiuns. É verdade que há muita exploração e muita ignorância no campo mediúnico, mas o estudo criterioso pode muito bem separar o “joio do trigo”.

O Espiritismo é combatido em dois flancos: a igreja e a classe médica, em parte. Não podemos generalizar, tanto mais quanto já é grande o número de médicos nas fileiras espíritas. Mas o combate sistemático ao Espiritismo peca pela base, porque os que o atacam não fazem estudos, não procuram conhecer as verdadeiras teses espíritas.

O problema da Igreja é com a Doutrina, por causa dos seus pontos de fé; mas o problema médico, que não cogita do aspecto doutrinário, está justamente no exercício da mediunidade. É o ponto nevrálgico.

Todos nós sabemos que há muita coisa errada na prática mediúnica, muito abuso, em grande parte decorrente do espírito de exploração, por um lado, e da falta de estudo, por outro lado. Também sabemos que o receituário constitui um problema dos mais delicados, inclusive para o próprio meio espírita, justamente por causa de certos fatos desagradáveis.

Mas, é indispensável considerar, antes de tudo, que o aspecto negativo é apenas uma contingência da ignorância e das fraquezas humanas a que os médiuns também estão sujeitos, ao passo que o aspecto positivo, que sempre existiu e existe, ainda não foi suficientemente estudado no meio médico de nossa terra e de outros países, onde ainda se pede a prisão de médiuns, como se fossem elementos marginais ou perigosos.

O lado mediúnico pode ser considerado fora da área espírita, em determinados casos, porque nem todo médium é espírita. A faculdade mediúnica — é ensino rudimentar da Doutrina — não depende das ideias, das qualidades morais, nem da crença do médium.

O uso da mediunidade, entretanto, é um problema essencialmente moral. E é com este ponto, principalmente, que a Doutrina Espírita tem que ver, em todos os casos. Isto, porém, é o que todos nós sabemos, porque estamos no movimento espírita, já nos familiarizamos com as obras doutrinárias e, mal ou bem, nos apresentamos como espíritas.

Ainda que este ou aquele caso de médium não seja, a rigor, um caso de Espiritismo, desde que o médium não tenha compromissos com a Doutrina e queira fazer da mediunidade o uso que bem entender, o certo é que, no fim de tudo, aparece o Espiritismo, porque a maioria, em seus raciocínios simplistas, entende que todo médium é espírita e, por esse prisma, faz os seus julgamentos. O Espiritismo é sempre envolvido...

Seja como for, e deixando de lado os princípios doutrinários e a situação particular do médium, se é espírita, budista, católico ou lá o que seja, a mediunidade em si deve ser estudada seriamente, mas com critério científico. Isto ainda não se fez nas altas instituições médicas. Combate-se, condena-se, reclama-se a prisão, mas não se faz um exame in loco, não se procura selecionar os casos para separar “a verdade da impostura”.

Veja-se o caso Arigó (1), que é, hoje, um assunto de repercussão internacional. Não interessa discutir crença nem deduzir consequências filosóficas ou religiosas, nem igualmente saber o que o médium pensa em matéria de fé: o que interessa, ou devia interessar à Medicina, são as operações que ele faz, por processos rudimentares, à luz do dia, para quem quiser ver com os próprios olhos, inteiramente fora das técnicas e das precauções normais da cirurgia. Mas faz, não é verdade? Como? Por que? Como pode ser?... Partindo destas indagações preliminares, mas necessárias, as corporações médicas, com o verdadeiro espírito cientifico, já deveriam ter designado comissões de especialistas para um exame direto.

Que se fez, porém? Nada disto. O que se viu foi a prisão do médium, com processo criminal, e a pedido exatamente de uma Associação Médica!... Qual a sociedade científica que teve o cuidado de, antes de qualquer pronunciamento, mandar chamar o médium Arigó para um estudo geral, com observação de todos os aspectos do caso?... Enquanto vários homens de ciência, de outros países, estão interessados em estudar demoradamente o caso Arigó, aqui, no Brasil, o médium foi encarcerado, respondeu a um processo e, por fim. saiu absolvido e aclamado por multidão compacta. Tudo isto seria evitado, se houvesse um critério científico. Não houve infelizmente. E do que se acusou Arigó? Qual o seu crime?...

Estaria Arigó enquadrado na figura penal do charlatão? Ora, charlatão é impostor, o indivíduo que impinge falsas drogas ou se apresenta com uma qualidade que não possui. Arigó nunca vendeu e não vende drogas de falsas propriedades curativas. Não é um impostor, portanto; nunca se disse médico e sempre diz que não é ele quem opera; declara abertamente que é o Dr. Fritz (espírito) quem faz as operações, pois ele, pessoalmente, nada pode fazer de si mesmo. Seria charlatão, incurso em contravenções penais, se algum dia se dissesse médico ou atribuísse aos seus méritos pessoais o resultado das operações de que os jornais dão notícia. (O autor deste artigo esteve em Congonhas e viu Arigó “virar” os olhos de dois pacientes com uma faca comum e, logo depois, os operados saiam da sala, normalmente).

Se Arigó não é médico e não se apresenta como tal; se não recebe dinheiro dos que o procuram, porque vive do seu emprego e tem, por isso mesmo, um horário determinado para os trabalhos mediúnicos, fora do serviço; se ele próprio confessa francamente que as operações são feitas pelo espírito que o assiste, onde está o charlatão, que não explora ninguém, não se considera milagroso, não faz comércio com a faculdade mediúnica?...

Se ele faz intervenções com êxito sem ser médico, sem conhecer técnica operatória e sem utilizar anestesia nem os instrumentos da cirurgia, e se já está provado que não houve até hoje um caso fatal, se nenhum paciente ficou inutilizado por causa disto, é o caso, então, de algum recurso diferente, seja extra-humano, seja de natureza ainda desconhecida dentro dos conceitos gerais da Medicina.

Por que as corporações médicas ainda não foram testar os conhecimentos desse espírito, uma vez que o médium é leigo no assunto, pois funciona apenas como instrumento? Poderiam fazê-lo, por simples experiência, estabelecendo uma conversa, em linguagem técnica, quando Arigó estivesse mediunizado. Se realmente o espírito do Dr. Fritz fosse um cirurgião, aguentaria uma interpelação em termos médicos, poderia dar respostas certas sobre uns tantos problemas pertinentes à profissão; se, porém, o espírito nada dissesse ou respondesse tolices, revelando completo desconhecimento da Medicina; ou seria um embusteiro, muito ignorante, ou não seria espírito. Seria o próprio médium, que estaria mistificando ou “inventando” o nome de um espírito.

Admitindo-se que fosse mistificação, e que não houvesse espírito algum nem tivesse existido o Dr. Fritz, como explicar as operações sem anestesia, sem os cuidados mais comezinhos da cirurgia, sem o instrumental apropriado? Seria habilidade excepcional de Arigó? Ainda que fosse ele muito hábil para fazer tudo isso em poucos minutos, não poderia evitar hemorragias e outras consequências, como não poderia prever um acidente operatório. Ainda não houve desses casos. Então há qualquer elemento imponderável, qualquer interferência transcendental ainda não identificada, desde que não seja admitida a existência do espírito.

Por que, então, as corporações médicas não estudam diretamente o problema Arigó, ainda que pondo de lado a questão do espírito? Infelizmente, não foi este o critério adotado. Em lugar de observações rigorosas, com espírito científico, porque se trata de alguma coisa inabitual, o que se deu, lamentavelmente, foi a prisão do médium, como se ainda estivéssemos nos tempos das “bruxas” da Idade Média.

Tudo isto demonstra, enfim, que não é somente do lado religioso que há bitolamento, mas também do lado científico, com o mesmo espírito de intolerância dos processos inquisitoriais. Quem não se lembra da campanha contra o movimento espírita, em 1939, no Rio de Janeiro, por causa da Hora Espírita Radiofônica? (2) Qual o objetivo da campanha? Impedir que se difundissem os princípios espíritas pelo rádio. De onde partiu essa infeliz iniciativa? De uma Sociedade Médica... A fonte é outra, mas o sentido é o mesmo: puro sectarismo, que tanto existe nas corporações religiosas, quanto nas agremiações científicas, embora seja paradoxal.

É bom lembrar, finalmente, que a campanha médica contra o Espiritismo não produziu efeito. Como decorrência do ambiente, que logo se formou, alguns jornais abriram suas colunas em defesa da causa espírita. De tudo isto, resultaram algumas ocorrências benéficas, começando pela doação de um terreno para a construção do Hospital Espírita Pedro de Alcântara, no bairro do Rio Comprido. Pouco depois, como reação à campanha, promoveu-se o I Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, no Rio, tendo-se realizado a sessão inaugural na ABI [Associação Brasileira de Imprensa], no dia 15 de novembro de 1939, data comemorativa do 50° aniversário da República Brasileira. Também, como reação, o saudoso confrade médico dr. Levindo Melo arregimentou diversos colegas seus, espíritas, e muitos outros confrades, para a fundação da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro. Ainda houve outras ocorrências, provocadas pela atitude de elementos hostis na classe médica.

Queremos concluir, dizendo apenas que a intolerância, seja no meio religioso, seja no meio médico, como também no meio espírita é sempre prejudicial à cultura e ao progresso do espírito. Ninguém possui a verdade integral, quer em ciência, quer em filosofia, quer em religião. Justamente por isso, devemos procurar a luz do conhecimento, observando, estudando e raciocinando sem preconceitos.

Notas:

(1) José Pedro de Freitas, mais conhecido como Zé Arigó, foi um médium de cura, médico-médium, nascido em Congonhas-MG em 18 de outubro de 1922 e desencarnado em 11 de janeiro de 1971, vítima de acidente de carro. Recebia o espírito Dr. Fritz, médico alemão desencarnado durante a I Guerra Mundial, e operava catarata, abcessos, quistos e tumores munido apenas de um canivete ou faca, sem assepsia ou anestesia. Chegou a ser condenado por curandeirismo e exercício ilegal da medicina e atraiu o interesse de pesquisadores estrangeiros, tornando-se uma celebridade no meio espírita e no campo da paranormalidade.

(2) “A Hora Espírita Radiofônica" surgiu em 1º de junho de 1939, no Rio de Janeiro e tornou-se o maior programa espírita de rádio de sua época, apresentado pelo radialista João Pinto de Sousa. A equipe do programa contava com Leopoldo Machado, como diretor geral. Guillon Ribeiro e Manoel Quintão, ambos da FEB, dentre outros, eram encarregados pela seleção do material. O dr. Henrique Andrade prestava consultoria jurídica. (Fonte: “Subsídios para a história da Radiodifusão Espírita”, artigo de Eduardo Carvalho Monteiro).


Fonte: Revista Internacional de Espiritismo, dezembro de 1968, Matão-SP.

Deolindo Amorim


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