DEUS NÃO MUDOU
Fomos
convencidos de que um Deus humano, sentado num trono no céu governava
tudo. O céu, dentro do sistema geocêntrico, ficava encima e o inferno,
embaixo. Mas, embora não exista nem encima nem embaixo, a ideia
permanece nas nossas estruturas mentais arcaicas.
Recentemente, a doença e a morte do governador Mário Cova mobilizaram a população em oração. Padres, pastores, rabinos, umbandistas, espíritas, rogaram ao Todo Poderoso pela saúde e pela vida do homem que governava o Estado de São Paulo.
A televisão mostrou milhares de crianças, mulheres e homens arrebatados à morte e à miséria em Moçambique, devido às chuvas que provocaram enchentes arrasadoras, aumentando a miséria daquele país africano, envolto, como os demais, em nebulosos processos de maturação, disputas tribais e de poder.
Lembro-me bem da amargura de um amigo que, endurecido e revoltado, em vão implorara a Deus que salvasse sua filha.
O Governador morreu, os moçambicanos estão na pior e a filha do amigo partiu.
O silêncio dos céus foi ensurdecedor.
Essa postura diante de Deus, repetida em vários idiomas e religiões, remete-nos, mitologicamente, ao homem primitivo, que se postava temeroso e trêmulo perante o trovão ou diante das lavas dos vulcões, tomados como manifestação da ira divina.
Desde então, acostumou-se a fazer oferendas ao Todo Poderoso, para aplacar suas iras.
Poucos são os que neste mundo não creem na existência de Deus. Cada povo, cada época, cada instante da evolução pessoal e coletiva, enfim, na marcha das civilizações, em permanente trânsito para as mutações constantes, defrontou-se com a questão da divindade.
Os judeus, pastores primitivos, definiram, afinal, um deus único, invisível. Foi esse deus vulcânico, incompetente, mas Todo-Poderoso, que nos foi ensinado, conforme o cristianismo, e que definiu o fluxo das concepções vitais, a partir do feito deslumbrante de Moisés no Monte Sinai.
Consolidado na cultura do Império Romano, o cristianismo, atendendo ao impositivo mitológico, transformou Jesus de Nazaré na versão visível de Deus, na confusão da Santíssima Trindade, além de fazê-lo ocupar o lugar do Cristo, no mito judaico do Messias.
Afinal, com exceção dos judeus, todos os povos materializaram, fizeram formas expressas de seus deuses para prestar-lhes culto. Os egípcios viam seus deuses em formas semi-humanas. Os gregos humanizaram de tal forma o Olimpo, onde Zeus reinava, que criaram toda uma linguagem e toda uma mitologia que está presente na cultura ocidental.
Maomé, na linha do cristianismo, também tornou Alá invisível.
O DEUS BÍBLICO
Os tempos mudam, mas nossa postura diante da divindade permanece estanque. Continuamos, no fundo, apegados aos padrões que a bíblia judaica nos trouxe, na tumultuada relação entre Javé, o deus de Abraão e o povo hebreu. Toda a concepção judaica de Deus está baseada no seu poder discricionário. Deus, criador imperfeito, sempre revisando sua obra e maldizendo o dia em que criou sua criatura.
Jesus de Nazaré usou outros termos referindo-se a Deus, chamando-o de “pai” e dizendo que “ele” amava as criaturas e era tão zeloso com elas que não lhe caía um só cabelo sem que “ele” soubesse...
Se antes Deus era temido, odiado e suportado sem alternativas, acendeu-se uma luz, relaxou-se o pensamento. Não estamos sós, Ele vela por nós...
Na verdade, essas modificações aumentaram ainda mais o conflito.
O Nazareno, segundo o evangelho, afirmou que Deus amou tanto o mundo que enviou o seu filho primogênito. A expressão, como se vê é falsa. Em primeiro lugar, no nosso modo de entender, não há “filho primogênito”, concepção só cabível no horizonte restrito da Terra como o universo e o povo judeu como o escolhido.
Além disso, está subentendido que esse amor de Deus representava uma espécie de relaxamento da ira divina em relação à criatura. É o que depreendemos dessa outra afirmativa evangélica: “... Ora sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celestial....” Ou seja, a misericórdia divina é uma exceção dada pelo seu “coração” bondoso aos seus filhos, por ele criados, mas quase sempre desviados.
O deus de Jesus é, portanto, diferente do deus Jeová. Este teve ímpetos de acabar com a raça de víboras que somos todos nós. Aliás, tentou liquidar a humanidade com o dilúvio, segundo o relato bíblico. Mas, também até aí falhou.
Todavia, como foi dito que Deus ama, protege, providencia, cuida e é pai, nada mais natural que seus filhos que criou pela sua exclusiva vontade, a ele se dirijam pedindo providências particulares sobre doença, morte, o futuro e outros detalhes do dia-a-dia. Então, por que esse silêncio ensurdecedor quando a maioria esmagadora pede, suplica e não é atendida?
Para justificar esse silêncio, os sistemas religiosos afirmam que Deus bem que poderia atender, mas não faz porque as pessoas não merecem. A dor, o sofrimento, são remédios para a doença endêmica da maldade que domina os corações humanos.
A criatura desde o início pecou, criou a culpa, fez mau uso de seus instrumentos de vida e, por isso, Deus teve que castigá-la. E por todas as gerações. O homem comum é mau, não obedece a Deus.
A Doutrina Kardecista tenta avançar um pouco nesse espinhoso caminho.
Desenhou todo um esquema da atuação divina, mostrando um delineamento de progresso e evolução, do qual a pessoa é responsável por si, num tempo sem limites, na busca da relativa perfeição. A Providência Divina apenas propicia meios para que esse processo se realize, através, por exemplo, da encarnação/reencarnação, como instrumento de apreensão pela experiência de fatores externos e internos, basicamente centrados no relacionamento com o outro.
O sistema kardecista é racionalista. Tenta enquadrar a ação divina e mesmo o progresso espiritual dentro de critérios racionais. Entretanto, não é fácil desestruturar a mente, trabalhada por milênios de entendimento, conceituação e pressão cultural.
Milênios se passaram e nós, os Espíritos em processo de autorreconhecimento e crescimento espiritual, fomos ensinados a ver a divindade como a um poder invisível, senhor da vida e morte, de difícil comunicação, localizado em algum lugar inacessível, cheio de intermediários que falam, discursam e determinam em seu nome.
Qualquer um olhando as estrelas pensa que lá encima fica Deus. O que levou o astronauta russo Gagarin a dizer que não tinha encontrado Deus, mostrando que até os ateus pensavam no céu lá encima.
As igrejas sempre se mostraram arrogantes, criaram seus líderes como autênticos deuses. O papa católico é visto por milhões como representante desse deus, embora tenha sido eleito pelos demais cardeais. O aiatolá Khomeini criou um estado teocrático no Irã e agora o Taliban, no Afeganistão, pretende impor uma lei marcial-religiosa que cerceia a vida em nome de Deus.
Essa visão específica que criou Deus à semelhança do homem e vice-versa, criador de tudo, onipresente e onisciente, se tornou sufocante e deu um sentido inquietador ao coração humano.
Por isso mesmo a Doutrina Kardecista não pode livrar-se totalmente do Deus bíblico e cristão. Kardec tentou analisar a divindade dentro de padrões racionais. Mas, a razão humana é incapaz de fazer essa operação lógica e, além disso, o universo, a divindade, ou o que seja, não é apenas racional, mas afetivo.
DEUS É INDIFERENTE
Desde o momento que o mundo se livrou da tutela da Igreja que coagia o Espírito, filósofos, políticos, cientistas, alguns sacerdotes e teólogos, começaram a duvidar da forma como o deus Jeová se transplantou para o cristianismo, não obstante as modificações introduzidas por Jesus de Nazaré.
O Espiritismo apresenta uma interessante visão do processo evolutivo, mas na prática, os espíritas de modo geral, absorveram o “modus operandi” cristão e transformaram a reencarnação em pena de talião e a Justiça divina em contabilidade de erros e acertos; e a dor, o sofrimento, como moedas de pagamento dos débitos das pessoas e das coletividades.
A visão estática da vida prejulgou que toda verdade tinha sido revelada. Sem instrumentos e no nível de civilização agrária, as Igrejas acreditaram que tudo estava descrito, determinado.
O imenso vazio entre as esperanças e a realidade, as contradições entre o discurso moral e a realidade espiritual, eram “coisas de Deus”, que convinha não mexer, nem muito menos penetrar. O mistério era a chave mestra desse domínio total sobre as mentes.
Por exemplo, Ptolomeu era um astrônomo e, entretanto, seu sistema afirmava que a Terra era parada e centro do universo. Ele partiu da observação visual, pela qual, de fato, a Terra parece parada. Estamos sentados e não sentimos o globo rodar. Andamos e não percebemos o girar do planeta sobre si mesmo e, muito menos, em direção ao sol. Por isso ele concebeu seu sistema de acordo com sua visão e de suas observações práticas.
Estabelecida essa “verdade final” pela autoridade religiosa, guardiã da palavra de Deus, quem se atreveu a contraria-la foi submetido ao castigo, à humilhação e considerado herege.
Entretanto, a Terra não está parada, gira em torno de si mesma, caminha para o sol e é apenas um pequeno planeta num universo de tamanho inconcebível pela mente humana.
Portanto, é preciso compreender que a imagem e a atividade de Deus foram concebidas dentro de uma estrutura que não mais pode subsistir.
A incompreensão dessas mudanças conceituais, essa resistência às transições permanentes do processo evolutivo provocam atitudes que, guardadas as devidas proporções, é semelhante à da Igreja em condenar Galileu Galilei.
Segundo os conceitos difundidos pelas religiões (inclusive a espírita-cristã, roustainguista, chiquista e emmanuelina), a divindade é sensível à dor das pessoas e das coletividades. Entretanto, no dia-a-dia, a divindade é indiferente à dor das pessoas e dos povos.
Deus, certamente, não mudou. O Universo, a vida, apesar das descobertas, avanços e tecnologias são, basicamente, os mesmos. Aparentemente, a divindade é indiferente à dor, ao sofrimento. Isso decorre das posições estruturais desenvolvidas através dos tempos. Queremos um “pai” que nos dê colo, ansiamos por um ente superior que nos ampare, nos livre do mal e que nos ame.
Nós não sabemos nada da natureza desse “pai”. Pensamos nele como um homem, um Espírito ou que seja, um ser isolado, colocado em algum lugar, dando ordens, providenciando coisas.
Reflito na necessidade de mudarmos nossa estrutura mental, para nos adequarmos à nova visão da vida, mistificada, fraudada por ignorância e pelos sistemas religiosos de todos os tempos.
Não digo que “Deus não se importa”, nem que ele esteja à parte da criação. Existe um fio condutor na história, mas não da forma como gostaríamos. A identificação da divindade com cada um e com cada oportunidade parece definida por processos além de nosso entendimento racional.
Os cristãos autênticos criaram a escapatória da felicidade além-túmulo num céu estático, para premiar os bons e um inferno para punir os maus. Cada um que se esforce em passar pela vida terrena, sofrendo seus males, até alcançar a morte, que seria a aspiração suprema para os bons, pois só ela seria a porta da paz eterna, mas certamente nada desejada pelos maiores candidatos ao sofrimento sem fim.
Escrevendo essas coisas me sinto contando uma história da carochinha. Mas, os espíritas-cristão não ficam atrás. Estão absolutamente convencidos da inferioridade do ser humano e o culpam por não ter, nesses últimos dois mil anos, se tornado bom O sofrimento não é propriamente festejado, mas de certa forma exaltado, como uma espécie de sadomasoquismo moral, para purgar erros, pagar dívidas e aspirar a uma promoção além-túmulo ou na próxima vida.
Também aí, tudo me parece extremamente sem base...
A CIÊNCIA E DEUS
A ciência avança na descoberta de elementos fundamentais da vida orgânica, dos sistemas celestes, na constituição genética e até mental das pessoas. Muitos ficam assustados porque, na imaginação da maioria, ela estaria ocupando o lugar que antes era reservado a Deus. Mas a ciência não cria, descobre. Ela desvenda o que existe e penetra em campos que eram, antigamente, exclusivos da divindade.
A ciência segue sem se importar com as crenças. Embora muitos cientistas se digam propensos a aceitar um poder espiritual, muitos deles pretendem desconhecer toda a história, querem reescrever a criação, desejam ter o poder de mudar, modificar e reconstruir as estruturas orgânico-mentais.
A subversão dos antigos conceitos sobre a criação levou a mudanças profundas no modelo moral da sociedade. A criatura humana, sempre vilipendiada pelas Igrejas, inclusive a espírita, quer ter seu direito de opinar sobre si mesma. Entra em conflito com padrões definidos como divinos, mas estabelecidos pelas igrejas, que afirmam que a vida pertence a Deus e o homem não tem poder sobre seu destino, traçado fora dele...
Amor, sexo, casamento, divórcio, aborto, eutanásia deixaram de ser zonas proibidas ou divinas. É o fruto do livre-arbítrio, ainda que leve, a princípio, à banalização que é a consequência primeira do rompimento da coação mental, social e religiosa.
No princípio a Terra era o centro. Depois o sol, e agora, não existe o centro do universo, mas uma multidão de galáxias se expandindo no Cosmo. Todavia, multidões e igrejas, inclusive a espírita, tentam manter as mesmas posições antiquadas e arcaicas, como se nada houvesse mudado. Não conseguem intervir para orientar. Recolhem-se na condenação ou no discurso repressor.
Mas, parece que não há volta.
A expressão “coisas de Deus” confirma a manutenção de estruturas mentais arcaicas, separando o divino do profano, uma forma de se manter a ignorância.
Na altura dos acontecimentos, qualquer profecia ou futurologia sobre como as próximas décadas serão é especulação sem sentido.
O que tem que ser será.
Allan Kardec afirmou que Deus não faz milagres, porque isso seria derrogar a própria Lei que ele criou. Portanto, a impassividade e o silêncio divinos podem ser apenas formas que não conseguimos compreender dos mecanismos operacionais da Lei. Ou, para que saibamos que temos de resolver nossos problemas. Que a solidariedade é o instrumento de recíproco auxílio que permitirá a vida de relação; e haverá um limite para que a banalização desencadeie a reação para uma posição do meio, sem volta ao passado, por ser impossível e sem arrogância, que é destruída pela desestruturação das pessoas.
A PRESENÇA DE DEUS
Embora nos momentos de dor, sofrimento e angústia, a criatura possa se sentir abandonada por Deus, quando não é ouvida, se percebermos com serenidade veremos que, apesar desse silêncio, persiste uma ordem, uma ordenação no encaminhar das coisas, no decorrer dos tempos.
É como se fosse um grande quebra-cabeça, cujas peças vão aos poucos se encaixando, embora seja impossível determinar, não apenas a extensão, mas a profundidade desse quebra-cabeça.
Nessa altura, não podemos localizar um Deus-homem em um lugar específico do Universo. Não temos nem imagem, nem conhecimento da natureza da divindade. Mas, certamente, podemos compreender, ainda que limitadamente, que a imagem, a concepção e a forma como Deus foi mostrado, pelo menos no cristianismo, não pode ser mais mantida.
Existe uma Lei que abrange o universo, na qual todos estamos inseridos. Essa sensação de solidão decorre da inquietação sobre a morte e o desejo de persistência da maioria. Existem o mal e o bem, não como polos excludentes, mas como condições mutáveis em direção à plena satisfação pessoal, que a sabedoria divina condiciona ao harmonioso relacionamento com os outros.
O universo é baseado na solidariedade, nas leis de atração nos conjuntos estelares e nos conjuntos humanos. Pertencemos a nós mesmos, mas precisamos pertencer ao conjunto, nos inserir na relação afetiva com os outros.
Ninguém quer sofrer e é natural que recorra a um poder que lhe ensinaram ser arbitrário, que ora cede, ora endurece, que tem ira e castiga. Na verdade, muitas pessoas se julgam injustiçadas porque acreditam que não mereciam o sofrimento e as perdas que têm. Reclamam da Justiça Divina dada como sábia e misericordiosa, mas que, parece, muitas vezes premia o mau e castiga o justo.
As coisas, os problemas, enfim, os conflitos e contradições da vida acontecem não porque estão delineados em determinismos divinos, no sentido da alienação da pessoa, sob o império do destino, maktub ou karma. Mas porque decorrem dos mecanismos das leis ambientais e dos complexos processos mentais, nos quais o Espírito elabora o mapa de sua vida, a partir de como se posiciona no mundo e estrutura seu caráter.
As pessoas pedem a Deus que modifique o diagnóstico natural. Quase sempre não são ouvidas Não há uma presença, digamos, “pessoal” da divindade, mas tudo gira em torno de processo sincrônicos, atemporais, mostrando uma direção.
Ainda assim, fica sem resposta a razão da vida.
Jaci Regis (1932-2010)
Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita, abril de 2001 – Licespe, Santos-SP.
Recentemente, a doença e a morte do governador Mário Cova mobilizaram a população em oração. Padres, pastores, rabinos, umbandistas, espíritas, rogaram ao Todo Poderoso pela saúde e pela vida do homem que governava o Estado de São Paulo.
A televisão mostrou milhares de crianças, mulheres e homens arrebatados à morte e à miséria em Moçambique, devido às chuvas que provocaram enchentes arrasadoras, aumentando a miséria daquele país africano, envolto, como os demais, em nebulosos processos de maturação, disputas tribais e de poder.
Lembro-me bem da amargura de um amigo que, endurecido e revoltado, em vão implorara a Deus que salvasse sua filha.
O Governador morreu, os moçambicanos estão na pior e a filha do amigo partiu.
O silêncio dos céus foi ensurdecedor.
Essa postura diante de Deus, repetida em vários idiomas e religiões, remete-nos, mitologicamente, ao homem primitivo, que se postava temeroso e trêmulo perante o trovão ou diante das lavas dos vulcões, tomados como manifestação da ira divina.
Desde então, acostumou-se a fazer oferendas ao Todo Poderoso, para aplacar suas iras.
Poucos são os que neste mundo não creem na existência de Deus. Cada povo, cada época, cada instante da evolução pessoal e coletiva, enfim, na marcha das civilizações, em permanente trânsito para as mutações constantes, defrontou-se com a questão da divindade.
Os judeus, pastores primitivos, definiram, afinal, um deus único, invisível. Foi esse deus vulcânico, incompetente, mas Todo-Poderoso, que nos foi ensinado, conforme o cristianismo, e que definiu o fluxo das concepções vitais, a partir do feito deslumbrante de Moisés no Monte Sinai.
Consolidado na cultura do Império Romano, o cristianismo, atendendo ao impositivo mitológico, transformou Jesus de Nazaré na versão visível de Deus, na confusão da Santíssima Trindade, além de fazê-lo ocupar o lugar do Cristo, no mito judaico do Messias.
Afinal, com exceção dos judeus, todos os povos materializaram, fizeram formas expressas de seus deuses para prestar-lhes culto. Os egípcios viam seus deuses em formas semi-humanas. Os gregos humanizaram de tal forma o Olimpo, onde Zeus reinava, que criaram toda uma linguagem e toda uma mitologia que está presente na cultura ocidental.
Maomé, na linha do cristianismo, também tornou Alá invisível.
O DEUS BÍBLICO
Os tempos mudam, mas nossa postura diante da divindade permanece estanque. Continuamos, no fundo, apegados aos padrões que a bíblia judaica nos trouxe, na tumultuada relação entre Javé, o deus de Abraão e o povo hebreu. Toda a concepção judaica de Deus está baseada no seu poder discricionário. Deus, criador imperfeito, sempre revisando sua obra e maldizendo o dia em que criou sua criatura.
Jesus de Nazaré usou outros termos referindo-se a Deus, chamando-o de “pai” e dizendo que “ele” amava as criaturas e era tão zeloso com elas que não lhe caía um só cabelo sem que “ele” soubesse...
Se antes Deus era temido, odiado e suportado sem alternativas, acendeu-se uma luz, relaxou-se o pensamento. Não estamos sós, Ele vela por nós...
Na verdade, essas modificações aumentaram ainda mais o conflito.
O Nazareno, segundo o evangelho, afirmou que Deus amou tanto o mundo que enviou o seu filho primogênito. A expressão, como se vê é falsa. Em primeiro lugar, no nosso modo de entender, não há “filho primogênito”, concepção só cabível no horizonte restrito da Terra como o universo e o povo judeu como o escolhido.
Além disso, está subentendido que esse amor de Deus representava uma espécie de relaxamento da ira divina em relação à criatura. É o que depreendemos dessa outra afirmativa evangélica: “... Ora sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai Celestial....” Ou seja, a misericórdia divina é uma exceção dada pelo seu “coração” bondoso aos seus filhos, por ele criados, mas quase sempre desviados.
O deus de Jesus é, portanto, diferente do deus Jeová. Este teve ímpetos de acabar com a raça de víboras que somos todos nós. Aliás, tentou liquidar a humanidade com o dilúvio, segundo o relato bíblico. Mas, também até aí falhou.
Todavia, como foi dito que Deus ama, protege, providencia, cuida e é pai, nada mais natural que seus filhos que criou pela sua exclusiva vontade, a ele se dirijam pedindo providências particulares sobre doença, morte, o futuro e outros detalhes do dia-a-dia. Então, por que esse silêncio ensurdecedor quando a maioria esmagadora pede, suplica e não é atendida?
Para justificar esse silêncio, os sistemas religiosos afirmam que Deus bem que poderia atender, mas não faz porque as pessoas não merecem. A dor, o sofrimento, são remédios para a doença endêmica da maldade que domina os corações humanos.
A criatura desde o início pecou, criou a culpa, fez mau uso de seus instrumentos de vida e, por isso, Deus teve que castigá-la. E por todas as gerações. O homem comum é mau, não obedece a Deus.
A Doutrina Kardecista tenta avançar um pouco nesse espinhoso caminho.
Desenhou todo um esquema da atuação divina, mostrando um delineamento de progresso e evolução, do qual a pessoa é responsável por si, num tempo sem limites, na busca da relativa perfeição. A Providência Divina apenas propicia meios para que esse processo se realize, através, por exemplo, da encarnação/reencarnação, como instrumento de apreensão pela experiência de fatores externos e internos, basicamente centrados no relacionamento com o outro.
O sistema kardecista é racionalista. Tenta enquadrar a ação divina e mesmo o progresso espiritual dentro de critérios racionais. Entretanto, não é fácil desestruturar a mente, trabalhada por milênios de entendimento, conceituação e pressão cultural.
Milênios se passaram e nós, os Espíritos em processo de autorreconhecimento e crescimento espiritual, fomos ensinados a ver a divindade como a um poder invisível, senhor da vida e morte, de difícil comunicação, localizado em algum lugar inacessível, cheio de intermediários que falam, discursam e determinam em seu nome.
Qualquer um olhando as estrelas pensa que lá encima fica Deus. O que levou o astronauta russo Gagarin a dizer que não tinha encontrado Deus, mostrando que até os ateus pensavam no céu lá encima.
As igrejas sempre se mostraram arrogantes, criaram seus líderes como autênticos deuses. O papa católico é visto por milhões como representante desse deus, embora tenha sido eleito pelos demais cardeais. O aiatolá Khomeini criou um estado teocrático no Irã e agora o Taliban, no Afeganistão, pretende impor uma lei marcial-religiosa que cerceia a vida em nome de Deus.
Essa visão específica que criou Deus à semelhança do homem e vice-versa, criador de tudo, onipresente e onisciente, se tornou sufocante e deu um sentido inquietador ao coração humano.
Por isso mesmo a Doutrina Kardecista não pode livrar-se totalmente do Deus bíblico e cristão. Kardec tentou analisar a divindade dentro de padrões racionais. Mas, a razão humana é incapaz de fazer essa operação lógica e, além disso, o universo, a divindade, ou o que seja, não é apenas racional, mas afetivo.
DEUS É INDIFERENTE
Desde o momento que o mundo se livrou da tutela da Igreja que coagia o Espírito, filósofos, políticos, cientistas, alguns sacerdotes e teólogos, começaram a duvidar da forma como o deus Jeová se transplantou para o cristianismo, não obstante as modificações introduzidas por Jesus de Nazaré.
O Espiritismo apresenta uma interessante visão do processo evolutivo, mas na prática, os espíritas de modo geral, absorveram o “modus operandi” cristão e transformaram a reencarnação em pena de talião e a Justiça divina em contabilidade de erros e acertos; e a dor, o sofrimento, como moedas de pagamento dos débitos das pessoas e das coletividades.
A visão estática da vida prejulgou que toda verdade tinha sido revelada. Sem instrumentos e no nível de civilização agrária, as Igrejas acreditaram que tudo estava descrito, determinado.
O imenso vazio entre as esperanças e a realidade, as contradições entre o discurso moral e a realidade espiritual, eram “coisas de Deus”, que convinha não mexer, nem muito menos penetrar. O mistério era a chave mestra desse domínio total sobre as mentes.
Por exemplo, Ptolomeu era um astrônomo e, entretanto, seu sistema afirmava que a Terra era parada e centro do universo. Ele partiu da observação visual, pela qual, de fato, a Terra parece parada. Estamos sentados e não sentimos o globo rodar. Andamos e não percebemos o girar do planeta sobre si mesmo e, muito menos, em direção ao sol. Por isso ele concebeu seu sistema de acordo com sua visão e de suas observações práticas.
Estabelecida essa “verdade final” pela autoridade religiosa, guardiã da palavra de Deus, quem se atreveu a contraria-la foi submetido ao castigo, à humilhação e considerado herege.
Entretanto, a Terra não está parada, gira em torno de si mesma, caminha para o sol e é apenas um pequeno planeta num universo de tamanho inconcebível pela mente humana.
Portanto, é preciso compreender que a imagem e a atividade de Deus foram concebidas dentro de uma estrutura que não mais pode subsistir.
A incompreensão dessas mudanças conceituais, essa resistência às transições permanentes do processo evolutivo provocam atitudes que, guardadas as devidas proporções, é semelhante à da Igreja em condenar Galileu Galilei.
Segundo os conceitos difundidos pelas religiões (inclusive a espírita-cristã, roustainguista, chiquista e emmanuelina), a divindade é sensível à dor das pessoas e das coletividades. Entretanto, no dia-a-dia, a divindade é indiferente à dor das pessoas e dos povos.
Deus, certamente, não mudou. O Universo, a vida, apesar das descobertas, avanços e tecnologias são, basicamente, os mesmos. Aparentemente, a divindade é indiferente à dor, ao sofrimento. Isso decorre das posições estruturais desenvolvidas através dos tempos. Queremos um “pai” que nos dê colo, ansiamos por um ente superior que nos ampare, nos livre do mal e que nos ame.
Nós não sabemos nada da natureza desse “pai”. Pensamos nele como um homem, um Espírito ou que seja, um ser isolado, colocado em algum lugar, dando ordens, providenciando coisas.
Reflito na necessidade de mudarmos nossa estrutura mental, para nos adequarmos à nova visão da vida, mistificada, fraudada por ignorância e pelos sistemas religiosos de todos os tempos.
Não digo que “Deus não se importa”, nem que ele esteja à parte da criação. Existe um fio condutor na história, mas não da forma como gostaríamos. A identificação da divindade com cada um e com cada oportunidade parece definida por processos além de nosso entendimento racional.
Os cristãos autênticos criaram a escapatória da felicidade além-túmulo num céu estático, para premiar os bons e um inferno para punir os maus. Cada um que se esforce em passar pela vida terrena, sofrendo seus males, até alcançar a morte, que seria a aspiração suprema para os bons, pois só ela seria a porta da paz eterna, mas certamente nada desejada pelos maiores candidatos ao sofrimento sem fim.
Escrevendo essas coisas me sinto contando uma história da carochinha. Mas, os espíritas-cristão não ficam atrás. Estão absolutamente convencidos da inferioridade do ser humano e o culpam por não ter, nesses últimos dois mil anos, se tornado bom O sofrimento não é propriamente festejado, mas de certa forma exaltado, como uma espécie de sadomasoquismo moral, para purgar erros, pagar dívidas e aspirar a uma promoção além-túmulo ou na próxima vida.
Também aí, tudo me parece extremamente sem base...
A CIÊNCIA E DEUS
A ciência avança na descoberta de elementos fundamentais da vida orgânica, dos sistemas celestes, na constituição genética e até mental das pessoas. Muitos ficam assustados porque, na imaginação da maioria, ela estaria ocupando o lugar que antes era reservado a Deus. Mas a ciência não cria, descobre. Ela desvenda o que existe e penetra em campos que eram, antigamente, exclusivos da divindade.
A ciência segue sem se importar com as crenças. Embora muitos cientistas se digam propensos a aceitar um poder espiritual, muitos deles pretendem desconhecer toda a história, querem reescrever a criação, desejam ter o poder de mudar, modificar e reconstruir as estruturas orgânico-mentais.
A subversão dos antigos conceitos sobre a criação levou a mudanças profundas no modelo moral da sociedade. A criatura humana, sempre vilipendiada pelas Igrejas, inclusive a espírita, quer ter seu direito de opinar sobre si mesma. Entra em conflito com padrões definidos como divinos, mas estabelecidos pelas igrejas, que afirmam que a vida pertence a Deus e o homem não tem poder sobre seu destino, traçado fora dele...
Amor, sexo, casamento, divórcio, aborto, eutanásia deixaram de ser zonas proibidas ou divinas. É o fruto do livre-arbítrio, ainda que leve, a princípio, à banalização que é a consequência primeira do rompimento da coação mental, social e religiosa.
No princípio a Terra era o centro. Depois o sol, e agora, não existe o centro do universo, mas uma multidão de galáxias se expandindo no Cosmo. Todavia, multidões e igrejas, inclusive a espírita, tentam manter as mesmas posições antiquadas e arcaicas, como se nada houvesse mudado. Não conseguem intervir para orientar. Recolhem-se na condenação ou no discurso repressor.
Mas, parece que não há volta.
A expressão “coisas de Deus” confirma a manutenção de estruturas mentais arcaicas, separando o divino do profano, uma forma de se manter a ignorância.
Na altura dos acontecimentos, qualquer profecia ou futurologia sobre como as próximas décadas serão é especulação sem sentido.
O que tem que ser será.
Allan Kardec afirmou que Deus não faz milagres, porque isso seria derrogar a própria Lei que ele criou. Portanto, a impassividade e o silêncio divinos podem ser apenas formas que não conseguimos compreender dos mecanismos operacionais da Lei. Ou, para que saibamos que temos de resolver nossos problemas. Que a solidariedade é o instrumento de recíproco auxílio que permitirá a vida de relação; e haverá um limite para que a banalização desencadeie a reação para uma posição do meio, sem volta ao passado, por ser impossível e sem arrogância, que é destruída pela desestruturação das pessoas.
A PRESENÇA DE DEUS
Embora nos momentos de dor, sofrimento e angústia, a criatura possa se sentir abandonada por Deus, quando não é ouvida, se percebermos com serenidade veremos que, apesar desse silêncio, persiste uma ordem, uma ordenação no encaminhar das coisas, no decorrer dos tempos.
É como se fosse um grande quebra-cabeça, cujas peças vão aos poucos se encaixando, embora seja impossível determinar, não apenas a extensão, mas a profundidade desse quebra-cabeça.
Nessa altura, não podemos localizar um Deus-homem em um lugar específico do Universo. Não temos nem imagem, nem conhecimento da natureza da divindade. Mas, certamente, podemos compreender, ainda que limitadamente, que a imagem, a concepção e a forma como Deus foi mostrado, pelo menos no cristianismo, não pode ser mais mantida.
Existe uma Lei que abrange o universo, na qual todos estamos inseridos. Essa sensação de solidão decorre da inquietação sobre a morte e o desejo de persistência da maioria. Existem o mal e o bem, não como polos excludentes, mas como condições mutáveis em direção à plena satisfação pessoal, que a sabedoria divina condiciona ao harmonioso relacionamento com os outros.
O universo é baseado na solidariedade, nas leis de atração nos conjuntos estelares e nos conjuntos humanos. Pertencemos a nós mesmos, mas precisamos pertencer ao conjunto, nos inserir na relação afetiva com os outros.
Ninguém quer sofrer e é natural que recorra a um poder que lhe ensinaram ser arbitrário, que ora cede, ora endurece, que tem ira e castiga. Na verdade, muitas pessoas se julgam injustiçadas porque acreditam que não mereciam o sofrimento e as perdas que têm. Reclamam da Justiça Divina dada como sábia e misericordiosa, mas que, parece, muitas vezes premia o mau e castiga o justo.
As coisas, os problemas, enfim, os conflitos e contradições da vida acontecem não porque estão delineados em determinismos divinos, no sentido da alienação da pessoa, sob o império do destino, maktub ou karma. Mas porque decorrem dos mecanismos das leis ambientais e dos complexos processos mentais, nos quais o Espírito elabora o mapa de sua vida, a partir de como se posiciona no mundo e estrutura seu caráter.
As pessoas pedem a Deus que modifique o diagnóstico natural. Quase sempre não são ouvidas Não há uma presença, digamos, “pessoal” da divindade, mas tudo gira em torno de processo sincrônicos, atemporais, mostrando uma direção.
Ainda assim, fica sem resposta a razão da vida.
Jaci Regis (1932-2010)
Fonte: Abertura - Jornal de Cultura Espírita, abril de 2001 – Licespe, Santos-SP.